São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Riscos e incertezas na economia mundial

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Não há análises consensuais de tendências sobre a trajetória futura da economia mundial. Uns estão convencidos de que a recessão norte-americana é, no máximo, um ciclo na forma de um W, que afetará 2003, mas passará logo em seguida. Outros estão preocupados com a deflação não só de ativos, mas de preços. A hipótese de uma longa era de "doença japonesa" (estagnação e deflação) no centro da economia mundial não está descartada.
Para a maioria dos autores que trataram da geoeconomia do poder global, a grande novidade da expansão do capitalismo na década de 90 era a inclusão da Rússia e, em particular, da China no sistema internacional sob controle da potência hegemônica. A possibilidade de que a União Européia pudesse disputar em poder econômico com os EUA, depois da adoção do euro, e de que a Ásia se mantivesse como a área de maior expansão do capitalismo daria ao sistema um equilíbrio estrutural multipolar que substituiria a antiga "tríade". Essa "globalização benigna", aliada ao aumento da concorrência, era vista como panacéia universal.
Discutir estabilização e convergência monetária e fiscal era moda nas décadas de 80 e de 90, apesar (de fato, por causa) das flutuações acentuadas nas paridades cambiais entre as principais moedas conversíveis. Hoje, os economistas menos ortodoxos discutem os riscos de deflação de preços, nas duas áreas do sistema que mais se transnacionalizaram na última década -a Ásia e os próprios EUA.
O economista-chefe de um importante banco de investimento americano avisa, em recente estudo econômico, que a deflação de preços vem da Ásia, sobretudo da China, com risco de espalhar-se para a Europa. Luiz Gonzaga Belluzzo, nosso economista mais atento e competente no acompanhamento das tendências internacionais, discute "Os riscos da deflação" ("Valor Econômico", 11/11/2002) na economia global, invocando as explicações de Fisher e de Keynes nas primeiras décadas do século 20.
Nos anos 30, a propagação da deflação foi muito rápida porque se processou por intermédio da ruptura do padrão libra-ouro, como padrão monetário internacional. Hoje, porém, não existe mais padrão dólar fixo. O atual "padrão dólar flexível" foi acompanhado de uma financeirização de todos os mercados, o que levou a uma brutal centralização do capital. Essa situação não permite mais estabelecer uma relação teórica tão clara entre a macroeconomia da riqueza e da renda como as que Fisher e Keynes propuseram.
Se haverá ou não uma onda global de deflação de preços, não é algo tão fácil de prever (sobretudo às vésperas de uma possível guerra no Iraque) e a rapidez de sua propagação ainda menos. A atual onda de deflação de ativos e de preços industriais começou no Japão no início da década de 90, atingiu os tigres asiáticos e agravou-se com a concorrência comercial da China. Convém lembrar, porém, que o enorme superávit de manufaturas chinesas é produzido pelas próprias filiais norte-americanas em suas zonas especiais de exportações dolarizadas. Os movimentos de capitais e a financeirização em dólar dão-se através de Hong Kong, uma praça histórica das finanças internacionais recentemente incorporada pela China continental.
Há dez anos não havia nenhuma previsão de onda deflacionária de preços industriais vinda da China. O olhar se concentrava na taxa de crescimento desse país e na forma como controlava a restrição externa ao crescimento. Os chineses combinavam o padrão de concorrência industrial e comercial de alguns tigres asiáticos com uma peculiar forma dual de padrão estatal de controle da moeda e do mercado de trabalho. Não se esperava que a China desempenhasse papel relevante na deflação de preços do começo do século 21. A longa deflação japonesa e a reversão do ciclo de crescimento norte-americano iniciado em 1992 também não faziam parte das conjecturas dos economistas globalitários. As atenções estavam centradas no crescimento dos EUA e na "exuberância irracional" dos mercados de capitais denunciada por Greenspan em 1996.
Poucos prestaram atenção ao fato de que as megafusões de corporações e bancos e a desregulação final entre os mercados de crédito e de capitais foram feitas no auge da gigantesca bolha especulativa. O que àquela altura parecia ser um excelente negócio, e permitiu uma enorme centralização de capital financeiro, trouxe, com a reversão do ciclo, os prejuízos correspondentes. O valor patrimonial das sociedades anônimas no mercado americano caiu cerca de US$ 13 trilhões entre 2000 e 2002.
As recentes declarações do presidente do Federal Reserve, para tentar tranquilizar a comunidade financeira internacional, foram feitas depois de sucessivas quedas da taxa de juros, a mais recente das quais levou-a a seu menor nível nos últimos 40 anos. Greenspan tentou mostrar que as políticas anticíclicas (juros baixos e déficit fiscal) adotadas pelas autoridades econômicas poderiam reverter a recessão e afastar a deflação.
As políticas macroeconômicas não dissolvem, porém, o risco financeiro sistêmico a que se submeteu o centro principal do capitalismo mundial ao permitir o entrelaçamento patrimonial e creditício entre os seus dez maiores bancos e as suas principais corporações. As operações financeiras "off the records" geraram não apenas balanços corporativos fictícios, mas uma alavancagem de crédito e um descasamento entre ativos e passivos sem precedentes que introjetam no núcleo duro do sistema uma situação de risco não-manejável do ponto de vista das políticas convencionais. Os problemas de digestão da crise dos conglomerados financeiros japoneses são imagens pálidas perto das dificuldades que esperam os grandes conglomerados norte-americanos nesta primeira década do século 21.

Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
mctavares@cdsid.com.br



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