São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005

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COMÉRCIO MUNDIAL

Para Pascal Lamy, Brasil terá de oferecer maior acesso a bens industriais e serviços para obter contrapartida

Ganho agrícola não será gratuito, diz OMC

Martial Trezzini - 13.out.05/Efe
Pascal Lamy, da OMC, que organiza o encontro de dezembro


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A GENEBRA

Pascal Lamy, o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, avisa o público brasileiro: obter ganhos em agricultura nas negociações comerciais globais, a grande prioridade brasileira, "não será gratuita". O Brasil terá que aceitar uma barganha, que, embora Lamy não explicite, vai se dar em bens industriais e serviços, de tal forma que os diplomatas de parceiros como Estados Unidos, União Européia, Japão e Coréia do Sul possam vender a seu próprio público as concessões em agricultura, que, de todo modo, continuam a ser "o motor" da Rodada Doha, diz o diretor-geral.
Trata-se do ciclo de liberalização comercial lançado em 2001 e que terá em dezembro, em Hong Kong, uma rodada decisiva, na 6ª Conferência Ministerial da instituição de que Lamy se tornou o diretor-geral em 1º de setembro.
Esse socialista francês de 58 anos graduou-se na Escola de Altos Estudos Comerciais e no Instituto de Estudos Políticos, ambos de Paris, e tem pós-graduação em Estudos Legais Avançados.
Antes de assumir a OMC, foi comissário (espécie de ministro) europeu do Comércio, função na qual negociou com o Brasil tanto no âmbito da própria OMC como no até agora frustrado plano de construir uma zona de livre comércio entre Mercosul e UE.
Com toda essa experiência, Lamy é voz autorizada para dizer que o Brasil faz parte de uma espécie de "quarteto mágico", que nada tem a ver com Ronaldinho, Robinho, Kaká e Ronaldo (ou Adriano). É o "Quad", no jargão da diplomacia comercial, formado por EUA, UE, Índia e Brasil.
Lamy conversou com a Folha na segunda, na sede da OMC. Um resumo da entrevista se segue.
 

Folha - Ao terminar em fracasso a Conferência Ministerial da OMC em Cancún, o senhor disse que o processo era "medieval". Continua sendo medieval, a ponto de eventualmente fazer com que a nova ministerial, em Hong Kong, não atenda às expectativas geradas?
Pascal Lamy -
Não foi a primeira vez que usei essa expressão. No texto que preparei para Cancún, mas acabei não usando, diria que estava errado em chamar a maneira como as ministeriais são realizadas de medieval. O certo seria dizer jurássica.
As ministeriais são organizadas de maneira a favorecer mais o fracasso que o sucesso. É por isso que estou trabalhando duro com as autoridades de Hong Kong e com o presidente do Conselho Geral [o principal organismo da OMC] para estruturar os dias que passaremos em Hong Kong de uma maneira que seja mais organizada e mais bem organizada.
Em Hong Kong, precisamos estruturar o encontro de forma que os ministros gastem seu tempo em coisas que valham a pena.

Folha - Que coisas?
Lamy -
Por exemplo: fazer que as discussões sobre as negociações comecem muito rapidamente, e não após três ou quatro dias.

Folha - O que pode emergir de Hong Kong que possa ser chamado de sucesso e o que pode ser chamado de fracasso, se não houver progresso, por exemplo, em agricultura, que o Brasil considera o motor da ministerial?
Lamy -
Ninguém nega que agricultura seja o motor, não da ministerial, mas da Rodada Doha. Foi o motor do acordo de julho de 2004 e permanece como tal.
Assim, sucesso em Hong Kong seria chegar o mais próximo possível de dois terços do caminho [para fechar a Rodada], de forma que o prazo do final de 2006 possa ser cumprido. Não apenas em agricultura mas nos 15 tópicos que são objeto da negociação.
Sucesso seria deixar Hong Kong tendo dado um passo entre 50% e 66% [do caminho] e preparado uma espécie de grande moldura que deixe claro que os 66% são alcançáveis, de forma que a reta final da negociação possa ocorrer.
Uma das características dessa negociação é que, quando você chega a uma plena definição de modalidades [objetivos da negociação e o caminho para alcançá-los] em agricultura e bens industriais, um computador pode fazer as tabelas [de liberalização comercial], uma enorme diferença em relação às rodadas anteriores. A tecnologia que estamos usando em matéria de redução tarifária e regras é muito mais poderosa do que a que usávamos, que era a de médias. Essa é uma das razões pelas quais se torna tão árduo definir plenamente as modalidades.
Além disso, quando se tenta colocar números nas modalidades nesse tópico, surge uma assimetria que terá que ser vista também em relação a outros tópicos, sejam preocupações de países em desenvolvimento com produtos tropicais ou o que seja, sejam preocupações dos EUA e da UE com bens industriais e serviços.

Folha - Uma questão mais psicológica que comercial: como o sr. faz para mudar seu chip mental para passar de parte em uma negociação, como comissário europeu para o Comércio, a árbitro, como diretor-geral da OMC?
Lamy -
É como o jogador de futebol que passa de uma equipe para outra. Quando me tornei comissário europeu, as pessoas diziam: como é que você, que jogava para a França, vai jogar para a União Européia? Eu realmente joguei para a União Européia e ninguém disse que eu estava jogando pela França. Ao contrário [Lamy sorri, em alusão ao fato de ter sido muito criticado em seu país, ultraprotecionista, por um viés bem mais aberturista em agricultura].

Folha - Como agricultura é o motor dessa negociação, não seria mais justo nivelar o campo de jogo antes em agricultura, em vez de lidar com bens industriais e serviços, na medida em que agricultura está bem atrás em liberalização?
Lamy -
É por isso que o grande passo adiante tem que ser dado desta vez. Mas não será dado de graça. É uma negociação. A UE, os EUA, o Japão, a Coréia do Sul e outros terão que convencer seus produtores rurais a aceitar muitos cortes, mas precisam convencê-los de que é um jogo em que todos ganham. É uma barganha. E ninguém nega que se trata menos do que plena reciprocidade [no sentido de que os países em desenvolvimento cedem menos que os ricos]. Mas é uma barganha.
No Brasil também, o público terá que ser convencido de que as coisas não acontecem por milagre, mas por química política. Se não, bom, a gente pode escrever textos acadêmicos sobre abertura do comércio, o que é bom, mas não encarnam acordos políticos e, portanto, não funcionam.

Folha - Seria correto dizer que, nesta Rodada, um acordo entre o Brasil e a UE teria o mesmo efeito que teve, na Rodada Uruguai o chamado acordo de Blair House entre EUA e Europa, que permitiu a abertura agrícola, ainda que modesta?
Lamy -
Não creio que, como diretor-geral, tenha uma visão a respeito. Mas o fato é que houve uma alteração no chamado "sistema Quad" [o "Quad" original era formado por Estados Unidos, UE, Canadá e Japão, todos ricos].
Agora, temos um novo "Quad", com EUA, UE, Índia e Brasil, com uma estranha ausência, a da China. Estranha porque, quando os quatro conversam entre si, não falam da China, mas ela está bem presente nas suas mentes.


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