São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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"Queda no valor dos imóveis seria catastrófica"

DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

Milhões de americanos vêm sustentando um aumento do consumo e novos investimentos no setor imobiliário com dinheiro obtido no refinanciamento de seus imóveis. Caso os juros dessas operações voltem a subir rapidamente, secará uma das principais fontes de recursos nos EUA e os cidadãos americanos poderão ficar mais endividados.
Há quem acredite numa piora ainda mais acentuada do cenário, com uma onda de inadimplência na área imobiliária respingando no setor bancário. Tanto que, no ano passado, o FMI (Fundo Monetário Internacional) lançou uma advertência pública. Segundo um relatório do Fundo, há 40% de chance de os preços dos imóveis caírem no médio prazo.
Os preços desses ativos nos EUA subiram 27% acima da inflação desde meados da década de 90, aponta o documento.
Para o professor Robert Guttmann, porém, o setor imobiliário, apesar da grande valorização nos últimos anos, pode agüentar bem, mesmo diante de um aumento da taxa de juros. Um dos motivos, explica o professor, é que os EUA têm um grande contingente de imigrantes e pobres que buscam realizar o sonho da casa própria. Leia a seguir mais trechos da entrevista. (MAC)

 

Folha - Existe a possibilidade de uma crise no setor imobiliário? Quais seriam as conseqüências para a economia americana, levando-se em conta o alto endividamento das famílias?
Guttmann -
Sempre que um ativo dobra de valor num intervalo de cinco anos mais ou menos, você precisa se preocupar com ajustes de preço abruptos. Apesar da desaceleração econômica e da desastrosa crise fiscal dos municípios, o setor imobiliário tem resistido muito bem por causa das baixas taxas de juros das hipotecas.
Mas, mesmo se as taxas subirem, o setor imobiliário pode se agüentar muito bem, por dois motivos relevantes: a) existência de muitos imigrantes e americanos mais pobres que buscam realizar o sonho da casa própria; b) uma oferta mais elástica de recursos para esse setor, devido às mudanças estruturais no sistema de crédito, principalmente na securitização das hipotecas.
Uma crise das agências federais do mercado de hipotecas, sob intensa fiscalização por causa de manipulações na contabilidade e práticas questionáveis de gestão de riscos, poderia representar um choque para todo o sistema. Uma situação de perigo potencial.
Se houver uma ruptura na oferta de crédito hipotecário ou uma queda acentuada dos valores dos imóveis poderá ser catastrófico para a economia americana dada a sua dependência do dinamismo desse setor.
No fundo, a economia americana estará bem enquanto a inflação dos preços dos imóveis ultrapassar as taxas de crescimento do endividamento geral do país.

Folha - O sr. concorda com o argumento do presidente do Fed, Alan Greenspan, sobre a solidez do sistema bancário americano, uma vez que os bancos melhoraram a transferência de riscos e os mecanismos de controle? Se for assim, mudou a natureza das crises financeiras?
Guttmann -
Enquanto as taxas de juros caem e ficam muito baixas, os bancos obtêm "spreads" favoráveis e, portanto, bons lucros. Depois de uma década neste ambiente de baixas taxas de juros, os bancos americanos fortaleceram seus capitais. As perdas por inadimplência também foram modestas durante todo o desaquecimento, após 2000.
Contudo, isso não significa ausência de instabilidade financeira. Atualmente, é muito mais provável que as crises financeiras surjam em mercados financeiros ou apareçam no contexto de rupturas na economia global com potencial de contágio em todo o mundo [como em 1997-99, partindo da Tailândia para o Brasil] em vez de se cristalizarem na forma de crises bancárias domésticas tradicionais.

Folha - Qual o papel do dólar e do euro no sistema monetário internacional?
Guttmann -
O dólar ainda é a moeda hegemônica, mas seu status está sendo corroído gradativamente devido à irresponsabilidade fiscal dos EUA, ao isolamento político do país e à erosão contínua do seu valor diante da inelástica e enorme necessidade de empréstimos externos [US$ 2 bilhões por dia útil].
Ao mesmo tempo, os EUA têm pela primeira vez desde 1945 um sério concorrente -o euro-, dados os rápidos avanços da moeda européia em termos de sua participação nos mercados internacionais de capitais e reservas oficiais.

Folha - A globalização financeira significa uma globalização do sistema financeiro dos EUA? Quais as limitações enfrentadas pelo sistema financeiro americano e pelo Federal Reserve?
Guttmann -
Essa pergunta é complicada. O sistema financeiro dos EUA com certeza lidera e aponta tendências em termos da securitização do crédito (e a importância dos mercados de dinheiro, de títulos e de ações), desenvolvimento de inovações financeiras, uso de derivativos para proteção ["hedging"] e especulação, dispositivos para reduzir os impostos sobre os ativos financeiros e empréstimos pessoais. Todos os outros países vão tentar copiar essas inovações.
Por outro lado, os bancos de investimento e os fundos de investimento americanos estão enfrentando uma crise estrutural por causa dos escândalos que revelaram práticas criminosas, abalando a confiança dos investidores. Os fundos de pensão com benefícios definidos das corporações não possuem reservas suficientes para garantir as aposentadorias prometidas. Portanto, essas três instituições-chave estão em crise, exatamente quando outros países começam a desenvolver as suas próprias versões regionais.
No que diz respeito ao setor bancário, existe uma tendência em todo o mundo a favor dos bancos universais, operando como supermercados financeiros. Mas a União Européia está na frente dos EUA nessa tendência, pois a separação de instituições financeiras -comerciais e de investimento- no pós-Segunda Guerra nunca foi tão longe quanto nos EUA. E a desregulamentação do setor bancário europeu começou uma década antes do que nos EUA ["Segunda Diretriz Bancária" da UE em 1989 e a "Lei sobre Modernização dos Serviços Financeiros" dos EUA em 1999].
O movimento de globalização financeira atual tem sido conduzido no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (1998) sob a tutela da Organização Mundial do Comércio (OMC), que garantiu "tratamento nacional" para os serviços financeiros estrangeiros, o que tem beneficiado tanto os bancos americanos como os da UE. O desafio é elaborar novas regras de regulação dos bancos universais, dinheiro eletrônico e mercados financeiros cada vez mais integrados, e tentar harmonizar as diferentes tradições através do BIS e da OMC.
Para a SEC (espécie de xerife dos mercados), o desafio é readquirir credibilidade como regulador efetivo dos mercados de capitais e da transparência das informações das empresas após os escândalos recentes. A governança e a contabilidade corporativa continuam sendo controversas e muito difíceis após as fraudes.



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