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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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CONSENSO CLONADO

Discurso do governo traz mesmas idéias do receituário renovado do Banco Mundial para os países emergentes

Lula reproduz nova agenda de Washington

GUSTAVO PATÚ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Uma frase minúscula, que passou despercebida no discurso de posse do ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda), dava uma pista preciosa sobre as origens da agenda que, com convicção surpreendente, o governo viria a abraçar: "Instituições importam".
As duas palavras remetem a um texto cujo título sintetiza com perfeição o novo receituário do mundo desenvolvido para os países ditos emergentes. Trata-se de "Além do Consenso de Washington: Instituições Importam" ("Beyond the Washington Consensus: Institutions Matter"), publicado em abril de 2000 por dois economistas do Banco Mundial.
Não é mera coincidência. Documentos e declarações da Fazenda nos últimos meses reproduzem, com grande similaridade de argumentos e até de palavras, estudos e trabalhos produzidos nos últimos anos por organismos internacionais, particularmente o Banco Mundial, para a revisão dos princípios lançados pelo Consenso de Washington no final da década de 80.
Levantamento feito pela Folha mostra essa identidade em propostas como reformas do mercado de crédito e da Lei de Falências, aperfeiçoamento do Judiciário, autonomia do Banco Central, reforço da austeridade fiscal sem aumento da carga tributária, coordenação de políticas sociais e a definição de regras transparentes e duradouras para a política econômica (veja quadro ao lado).
Até a proposta de uma política fiscal contracíclica (mais branda em períodos de estagnação econômica), apresentada como uma inovação pelo governo, aparece num documento anterior do Banco Mundial.
Tudo isso se encaixa no tema que é a obsessão da nova agenda de Washington: as chamadas reformas de segunda geração -ou reformas institucionais. O ideário vem da constatação, no final dos anos 90, de que cardápio anterior de reformas -concentrado em ajuste fiscal, privatização, abertura comercial e financeira- não foi capaz de produzir crescimento econômico e redução da pobreza nas proporções desejadas.
Os exemplos mais claros de como as novas teses encontraram acolhida no governo Lula estão no documento lançado no mês passado pela Fazenda com o título "Política Econômica e Reformas Estruturais" -que, aliás, repete a palavra "instituições" e suas variações por 30 vezes ao longo de suas 95 páginas.
"Um tema unificador das reformas propostas é a ênfase na importância do desenho institucional e legal para o adequado funcionamento dos mercados e das políticas públicas", diz o texto.

"Consenso Ampliado"
Muito desse pensamento, como é possível notar, já havia sido encampado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso -coincidência ou não, depois do acordo do país com o FMI. O próprio FHC também usou a expressão "instituições importam", num discurso em 2000.
O surpreendente não é apenas a adoção do receituário por Lula, contrariando teses históricas do PT e a tradicional antipatia, para usar uma palavra suave, pelo FMI e pelo Banco Mundial. O mais curioso é que o governo petista deu consistência e organização inéditas no país ao que já foi denominado "Consenso Ampliado de Washington".
No documento da Fazenda, que até agora chamou mais a atenção por causa das juras de estabilidade fiscal, estão reunidas todas as principais preocupações apresentadas em trabalhos do Banco Mundial nos últimos anos.
Há desde medidas prescritas para os países emergentes em geral -como leis de falência que protejam direitos dos credores e evitem o fechamento de empresas viáveis- como voltadas especificamente ao Brasil.

Juros altos
Um exemplo da sintonia é um documento elaborado em janeiro pelo organismo, prenunciando o que o governo só poria em papel timbrado três meses depois: "Brasil: Estabilidade para o Crescimento e a Redução da Pobreza" ("Brazil: Stability for Growth and Poverty Reduction").
Do texto constam a necessidade de manter juros altos por enquanto, de aperto do ajuste das contas públicas por meio de corte de gastos, as linhas para uma reforma tributária e a política fiscal contracíclica.
É claro que o trabalho contou com a colaboração de especialistas brasileiros e membros do governo -o próprio Banco Mundial relata isso, mas afirma que as idéias ali expostas são "exclusivamente" do organismo.
A colaboração entre estudiosos do Brasil e do organismo não vem de agora. As propostas assumidas por Lula e Palocci já davam sinais de vida em um documento produzido durante a campanha eleitoral, a "Agenda Perdida", pelo Iets (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade).
Do Iets, entidade financiada por organismos internacionais, entre eles o Banco Mundial, Palocci recrutou o principal formulador de sua equipe, o secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, um dos coordenadores da "Agenda Perdida".

Cenário sombrio
Há quem defenda que a nova agenda de Washington representa uma revisão do neoliberalismo dogmático do consenso original, por rejeitar fórmulas iguais para todos os países, buscar uma agenda social unida à econômica e ser influenciada pelas críticas de economistas dissidentes, como Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial.
Em termos: o novo pensamento reconhece falhas no anterior, mas seu grau de divergência é muito mais suave do que, por exemplo, o apresentado pela escola desenvolvimentista latino-americana. No atacado, continua-se basicamente confiando nas virtudes de um mercado livre e um Estado disciplinado.
O que mudou drasticamente, de fato, foi a conjuntura internacional. Se o Consenso de Washington ganhou força num cenário de otimismo, crescimento acelerado e fartos fluxos de capital externo, as reformas de segunda geração apareceram à medida que o mundo caminhava para um cenário de crise -é sintomático que uma de suas preocupações principais seja com novas leis para as falências.
Em outras palavras: antes, o espírito da coisa era permitir que os países atrasados pegassem carona numa onda de prosperidade; agora, trata-se de preveni-los contra mais turbulências.
O documento de janeiro do Banco Mundial sobre o Brasil é explícito: "Essas reformas, desejáveis por si mesmas nos campos da equidade e da eficiência, aumentariam decisivamente as chances de estabilidade, mesmo em circunstâncias adversas, e acelerariam a transição para eliminar a vulnerabilidade. Eventos recentes serviram como um alerta sombrio dos perigos de choques macroeconômicos inesperados".
Entende-se, com isso, a prudência do governo Lula, amparado no receituário e nos US$ 30 bilhões do FMI para garantir o fechamento das contas do país. As promessas de crescimento, porém, continuam no capítulo da esperança.

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