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OPINIÃO ECONÔMICA
Ombudsman
JOÃO SAYAD
Muitos brasileiros preferem
falar em inglês quando estão na Argentina. Línguas próximas, como o castelhano, são as
mais difíceis. Collor dizia "pueco"
no lugar de "poco" em espanhol.
Portugueses e brasileiros falam
a mesma língua e não se entendem. Muitos portugueses falam
em inglês com turistas brasileiros
em Portugal.
Línguas são faladas, escritas e
gesticuladas. Dependem de expressões faciais, contexto, tom de
voz, acentuação, vírgulas e hifens.
Mudam rapidamente com a política, a televisão, as invenções e as
piadas. Temos muitas dificuldades em nos fazer compreender.
Para mim, escrever é um alívio
para a irritação, a impotência e a
intolerância. Prefiro escrever a falar ao telefone ou conversar. Escrevendo, tenho a impressão de
controlar o ritmo dos sentimentos
e das palavras. Entretanto amigos
e leitores gostam mais dos artigos
que saem de uma vez só, em explosão de violência.
Graças à generosidade da Folha, escrevi durante cinco anos e
meio nesta coluna, todas as segundas-feiras.
Comecei no primeiro aniversário do Real, com câmbio fixo e sobrevalorizado e juros muito altos.
Nunca entendi como a língua
neoliberal foi usada e traduzida
para a negociação política nacional.
Como era possível que a social-democracia praticasse essa política acusando o "estado de bem-estar social" brasileiro, sempre mirrado e insuficiente, como responsável pelas nossas mazelas?
Por que o Partido da Frente Liberal foi batizado de liberal se representa interesses locais e legítimos que se traduzem em demanda de empregos, cargos e subsídios?
Como era possível que todos falassem e continuassem a falar de
crise fiscal quando a crise era e
continua a ser financeira, isto é,
vem do Banco Central e não do
Tesouro Nacional, ou seja, dos juros altos e não da Previdência Social?
A política do governo era incoerente com a linguagem que usava
-déficit sem déficit e liberalismo
com intervenção.
Cinco anos e meio depois, ainda não compreendo. Talvez leve
as palavras muito a sério, ao pé
da letra, como os portugueses.
Talvez o mundo tenha sido sempre assim. No final da Idade Média, a linguagem do amor cristão
mais o renascimento do humanismo clássico produziram a Inquisição, que queimou centenas
de milhares de mulheres acusadas de bruxaria.
No primeiro artigo de 1995, prevenia os leitores contra os economistas. Somos os intérpretes dos
mistérios contemporâneos como
os oficiais da Inquisição foram no
passado. Explicamos o inexplicável e mandamos matar em nome
da doutrina do dia.
Hoje estou abandonando este
espaço das segundas-feiras, pois
fui convidado pela prefeita eleita
Marta Suplicy para o cargo de secretário das Finanças do município. Na Prefeitura de São Paulo,
torno-me governo e, portanto,
suspeito. A doutrina considera
todos os governos muito poderosos.
Coitada da cidade de São Paulo! A prefeitura arrecada apenas
R$ 7,8 bilhões por ano. Cada paulistano paga apenas R$ 60 por
mês por todos esses serviços, por
meio de impostos federais, estaduais, municipais, multas e taxas, um valor menor do que a
despesa de condomínio da maior
parte dos prédios da cidade.
Com esse dinheiro, é responsável por 1 milhão de alunos do ensino fundamental, mais de 20
hospitais municipais, limpeza urbana, pavimentação e abertura
de novas ruas, transporte urbano,
coleta de lixo, dezenas de bibliotecas municipais.
A arrecadação da prefeitura é
menor do que o faturamento da
Telesp. Enquanto a Telesp oferece
serviços telefônicos, a prefeitura é
responsável pela maior cidade do
país, com o maior contingente de
cidadãos pobres e elevados índices de violência.
Há pouco tempo, afirmei que a
situação financeira da prefeitura
era muito difícil. Foram oito anos
de má administração, de crescimento das dívidas e da desmotivação dos funcionários. Os municípios de São Paulo ficaram com
uma dívida de R$ 18 bilhões,
mais do que o dobro da arrecadação, dívida que rende juros de 6%
mais correção monetária. Recebemos castigo de 30 anos, a ser
pago por filhos e netos porque escolhemos mal nossos governantes. Todos conhecem a situação.
A imprensa traduziu a notícia
de diversas formas. O "Estado de
S. Paulo" noticiou que eu teria dito que a prefeitura não tinha recursos para pagar a folha, o que é
falso.
A Folha me transformou em
cruel tecnocrata neoliberal infiltrado no governo do PT, um algoz
dos gastos sociais, obrigado a engolir as palavras que escreveu.
O "Jornal da Tarde", que me
classificava de estatizante, transformou-me em paladino da privatização.
Tenho certeza de que a prefeitura vai conseguir dinheiro para todos os programas sociais. O governo da prefeita Marta pode
contar com meus melhores esforços para o seu objetivo de transformar a administração municipal num bom exemplo para o
país.
Há cinco anos e meio comecei a
escrever neste espaço pedindo que
os leitores tomassem cuidado com
os economistas, donos da doutrina que explica nossos tempos.
Neste último artigo, quero dizer
que não devem preocupar-se com
os jornalistas. São insuspeitos pois
usam a suspeita como método.
Diferentemente dos economistas, não fazem parte de nenhuma
escola ou panelinha como a dos
desenvolvimentistas ou a dos monetaristas. São absolutamente
neutros.
Não fazem parte do governo ou
de partidos. Abominam políticos.
São os donos da objetividade e os
construtores do mundo real.
Ainda não conseguiram suspeitar da própria suspeita. Aguardam ansiosamente que eu negue
o que escrevi. Estão enganados.
Não consigo esquecer.
João Sayad, 55, economista, professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de
"Que País É Este?" (editora Revan).
E-mail - jsayad@attglobal.net
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