São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2000

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ombudsman

JOÃO SAYAD

Muitos brasileiros preferem falar em inglês quando estão na Argentina. Línguas próximas, como o castelhano, são as mais difíceis. Collor dizia "pueco" no lugar de "poco" em espanhol.
Portugueses e brasileiros falam a mesma língua e não se entendem. Muitos portugueses falam em inglês com turistas brasileiros em Portugal.
Línguas são faladas, escritas e gesticuladas. Dependem de expressões faciais, contexto, tom de voz, acentuação, vírgulas e hifens. Mudam rapidamente com a política, a televisão, as invenções e as piadas. Temos muitas dificuldades em nos fazer compreender.
Para mim, escrever é um alívio para a irritação, a impotência e a intolerância. Prefiro escrever a falar ao telefone ou conversar. Escrevendo, tenho a impressão de controlar o ritmo dos sentimentos e das palavras. Entretanto amigos e leitores gostam mais dos artigos que saem de uma vez só, em explosão de violência.
Graças à generosidade da Folha, escrevi durante cinco anos e meio nesta coluna, todas as segundas-feiras.
Comecei no primeiro aniversário do Real, com câmbio fixo e sobrevalorizado e juros muito altos. Nunca entendi como a língua neoliberal foi usada e traduzida para a negociação política nacional.
Como era possível que a social-democracia praticasse essa política acusando o "estado de bem-estar social" brasileiro, sempre mirrado e insuficiente, como responsável pelas nossas mazelas?
Por que o Partido da Frente Liberal foi batizado de liberal se representa interesses locais e legítimos que se traduzem em demanda de empregos, cargos e subsídios?
Como era possível que todos falassem e continuassem a falar de crise fiscal quando a crise era e continua a ser financeira, isto é, vem do Banco Central e não do Tesouro Nacional, ou seja, dos juros altos e não da Previdência Social?
A política do governo era incoerente com a linguagem que usava -déficit sem déficit e liberalismo com intervenção.
Cinco anos e meio depois, ainda não compreendo. Talvez leve as palavras muito a sério, ao pé da letra, como os portugueses. Talvez o mundo tenha sido sempre assim. No final da Idade Média, a linguagem do amor cristão mais o renascimento do humanismo clássico produziram a Inquisição, que queimou centenas de milhares de mulheres acusadas de bruxaria.
No primeiro artigo de 1995, prevenia os leitores contra os economistas. Somos os intérpretes dos mistérios contemporâneos como os oficiais da Inquisição foram no passado. Explicamos o inexplicável e mandamos matar em nome da doutrina do dia.
Hoje estou abandonando este espaço das segundas-feiras, pois fui convidado pela prefeita eleita Marta Suplicy para o cargo de secretário das Finanças do município. Na Prefeitura de São Paulo, torno-me governo e, portanto, suspeito. A doutrina considera todos os governos muito poderosos.
Coitada da cidade de São Paulo! A prefeitura arrecada apenas R$ 7,8 bilhões por ano. Cada paulistano paga apenas R$ 60 por mês por todos esses serviços, por meio de impostos federais, estaduais, municipais, multas e taxas, um valor menor do que a despesa de condomínio da maior parte dos prédios da cidade.
Com esse dinheiro, é responsável por 1 milhão de alunos do ensino fundamental, mais de 20 hospitais municipais, limpeza urbana, pavimentação e abertura de novas ruas, transporte urbano, coleta de lixo, dezenas de bibliotecas municipais.
A arrecadação da prefeitura é menor do que o faturamento da Telesp. Enquanto a Telesp oferece serviços telefônicos, a prefeitura é responsável pela maior cidade do país, com o maior contingente de cidadãos pobres e elevados índices de violência.
Há pouco tempo, afirmei que a situação financeira da prefeitura era muito difícil. Foram oito anos de má administração, de crescimento das dívidas e da desmotivação dos funcionários. Os municípios de São Paulo ficaram com uma dívida de R$ 18 bilhões, mais do que o dobro da arrecadação, dívida que rende juros de 6% mais correção monetária. Recebemos castigo de 30 anos, a ser pago por filhos e netos porque escolhemos mal nossos governantes. Todos conhecem a situação.
A imprensa traduziu a notícia de diversas formas. O "Estado de S. Paulo" noticiou que eu teria dito que a prefeitura não tinha recursos para pagar a folha, o que é falso.
A Folha me transformou em cruel tecnocrata neoliberal infiltrado no governo do PT, um algoz dos gastos sociais, obrigado a engolir as palavras que escreveu.
O "Jornal da Tarde", que me classificava de estatizante, transformou-me em paladino da privatização.
Tenho certeza de que a prefeitura vai conseguir dinheiro para todos os programas sociais. O governo da prefeita Marta pode contar com meus melhores esforços para o seu objetivo de transformar a administração municipal num bom exemplo para o país.
Há cinco anos e meio comecei a escrever neste espaço pedindo que os leitores tomassem cuidado com os economistas, donos da doutrina que explica nossos tempos.
Neste último artigo, quero dizer que não devem preocupar-se com os jornalistas. São insuspeitos pois usam a suspeita como método.
Diferentemente dos economistas, não fazem parte de nenhuma escola ou panelinha como a dos desenvolvimentistas ou a dos monetaristas. São absolutamente neutros.
Não fazem parte do governo ou de partidos. Abominam políticos. São os donos da objetividade e os construtores do mundo real.
Ainda não conseguiram suspeitar da própria suspeita. Aguardam ansiosamente que eu negue o que escrevi. Estão enganados. Não consigo esquecer.


João Sayad, 55, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País É Este?" (editora Revan).

E-mail - jsayad@attglobal.net


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