São Paulo, terça-feira, 26 de janeiro de 2010

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ENTREVISTA

PASCAL LAMY

Há riscos de bolha na China e no Brasil

Diretor-geral da OMC elogia emergentes, mas vê indícios de superaquecimento pós-crise

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio está cauteloso, mas é só elogios ao falar de emergentes. Para Pascal Lamy, esses foram os países mais bem conduzidos na crise econômica global e sua fatia no comércio mundial, hoje perto de 35%, continuará a crescer se novos obstáculos não surgirem e se o risco de bolha na China e no Brasil for controlado. Os próximos dados oficiais, aliás, devem mostrar a estreia do país asiático como maior exportador global, à frente da Alemanha. E uma retração de só 6% do comércio no bloco em desenvolvimento -a metade da verificada nas nações mais ricas.

LUCIANA COELHO
DE GENEBRA

A OMC espera uma retomada do comércio internacional neste ano, após suas estimativas indicarem um mergulho maior que 10% em 2009. Mas não prevê ainda qual a força. Os primeiros números oficiais saem em março, mesmo mês em que a entidade fará um exercício crucial: reavaliar a decrépita Rodada Doha de liberalização do comércio global. Se não se constatar avanços, as negociações poderão ser enterradas finalmente. Embora Lamy ache bobagem voltar ao zero após oito anos, ele admite que as idas e vindas no processo prejudicaram a credibilidade do sistema multilateral, objeto de outros arranhões em 2009.
O francês, que iniciou em setembro seu segundo mandato de quatro anos, recebeu a Folha em seu gabinete, na gigantesca sede da OMC, na última sexta. A seguir, seu diagnóstico do comércio global pós-crise.

 

FOLHA - Vamos ter uma retomada do comércio em 2010?
PASCAL LAMY - Com certeza, pois a base é muito baixa. A pergunta é de quanto, e é cedo para dizer. Temos de ver como a demanda e a oferta se comportam. Pela estimativa, tivemos uma queda de mais de 10% em volume em 2009, que corresponderia a um recuo de 12% nos países desenvolvidos e de 6% nos em desenvolvimento. Isso significa que os países em desenvolvimento foram mais resilientes. Primeiro, a economia deles sofreu menos que a dos desenvolvidos; segundo, sua elasticidade [de renda] no comércio global é menor por exportarem mais commodities, e, mesmo no setor manufatureiro, se especializaram em produtos menos afetados -é mais fácil você trocar de telefone que de carro. E o terceiro fator é que, ao contrário das expectativas, o protecionismo não subiu fortemente.

FOLHA - Não?
LAMY - Houve casos, você viu as investigações antidumping. Por outro lado, alguns países se abriram mais, como o México e a Malásia. No saldo, o comércio internacional é tão aberto quanto antes da crise.

FOLHA - Quanto dessa resiliência se ampara na China?
LAMY - Os emergentes foram mais resilientes em geral. Não só passaram pela crise como passaram bem. Conseguiram instalar políticas anticíclicas que funcionaram. E eles têm reservas, acumularam capacidades fiscais e agiram corretamente de forma anticíclica. O Brasil, pela primeira vez na história, teve uma reação macroeconômica anticíclica apropriada, pois vinha de uma estabilidade pré-crise. Os países emergentes foram mais bem conduzidos. Vamos ver como será o futuro, pois parece haver algum superaquecimento na China e no Brasil

FOLHA - Há risco de bolha?
LAMY - Sempre há. Mas hoje há instrumentos para evitá-la. Agora eles têm políticas mais sofisticadas e melhor administração macroeconômica.

FOLHA - A ampliação da fatia dos emergentes no comércio internacional é uma tendência para os próximos anos?
LAMY - O peso deles tem aumentado regularmente. O natural é crescer, se não houver percalços. Se o comércio internacional continuar aberto.

FOLHA - Os EUA estão mais defensivos com isso, sobretudo em relação à China?
LAMY - Embora isso [a busca de medidas defensivas] tenha sido contido, houve um pouco mais de ações antidumping e painéis [de arbitragem na OMC] pedidos pelos EUA. Isso se deve ao volume, se o volume é maior há mais atrito. E esse não é o problema, fricção vai haver, aconteceu entre EUA e Japão nos anos 80, entre EUA e União Europeia nos anos 90. A questão é se essas fricções são tratadas do modo certo. Há uma relação entre o ciclo econômico e os mecanismos de defesa comercial -no topo do ciclo há menos defesa, na baixa, mais. Não estamos a salvo [do protecionismo] ainda, mas os dados mostram que por ora estamos dentro do nível esperado.

FOLHA - Pode piorar?
LAMY - Estou cauteloso. O motor que cria o protecionismo é o mercado de trabalho, que continuará em baixa neste ano e talvez no ano que vem. Se esta crise resultar em mudanças nos hábitos de consumo, as conexões entre o nível de crescimento e o nível do mercado de trabalho podem mudar. Se você tem de produzir algo diferente, não vai fazer isso de repente. Mas também há hoje uma noção mais disseminada de que manter a abertura [comercial] é importante.

FOLHA - Parece que houve menos pressões domésticas.
LAMY - Houve pressões sim, só que se resistiu a elas. Muitos ministros do Comércio me disseram isso. Há um sistema de monitoramento hoje, e os ministros podem dizer [a quem lhes pede ações para proteger a indústria local]: "Se fizermos isso, acontece aquilo e pode acarretar determinada reação". Isso fez muito pela estabilização [do sistema comercial].

FOLHA - Os governos estão mais conscientes então?
LAMY - Sim, mas temos de ser politicamente lúcidos. Há quem pense que poderia manter seu emprego se houvesse menos importação. Não há compreensão [do público] ainda de como funciona [o sistema]. É algo difícil de explicar na TV em dez segundos. Outra coisa na relação são as políticas domésticas, como a seguridade social. A percepção das pessoas sobre o comércio internacional costuma ser melhor em países com mais proteção social, onde é menor o impacto de perder o emprego.

FOLHA - A China vai se consolidar como líder exportador, como já há indícios?
LAMY - Sim. Já aconteceu. Se não, está para acontecer. Mas é preciso ver que a China pode ser o maior exportador, mas a maior parte do que exporta ela importa. Se você olhar o valor agregado das exportações, há relativamente menos que nos EUA -embora a percepção pública seja outra.

FOLHA - Segundo a Unctad [braço da ONU para comércio e desenvolvimento], o padrão de investimento externo no país tem mudado, com mais dinheiro injetado em serviços. O mesmo não vai acontecer com o comércio?
LAMY - Está acontecendo progressivamente, conforme eles aumentam seu mercado doméstico, embora ainda haja um índice de poupança muito alto na China. [Nas exportações], eles vão produzir mercadorias de valor agregado mais alto e aumentar sua indústria de serviços, como aconteceu nas economias desenvolvidas.

FOLHA - O sr. e vários atores na Rodada Doha disseram que 2010 é o último ano para fechar as negociações. O que o sr. espera que mude neste ano, se não conseguiram resultados até agora?
LAMY - É uma mistura: preparo técnico, opções adequadas que depois têm de ser decididas politicamente. [Os governos] dizem querer concluir em 2010. Vão reexaminar a situação na avaliação em março.

FOLHA - É possível que, caso avaliem que os obstáculos continuam lá, a Rodada Doha renasça como algo diferente?
LAMY - Estamos no sistema internacional, onde você precisa de mandatos, dos tópicos que serão negociados. Não acho que isso possa mudar. A noção de que devíamos renegociar o mandato e reequilibrar os tópicos pode ser atraente intelectualmente. Mas não somos uma universidade, somos uma instituição internacional. Há nove anos que negociamos isso, quase. Eles avançaram 80%. Voltar à estaca zero não faz sentido.

FOLHA - Os países não podem arcar com um fracasso?
LAMY - Depende do que você chama de fracasso. Negociações internacionais não fracassam nunca.

FOLHA - Podemos passar horas discutindo isso.
LAMY - Mas elas não fracassam, elas se arrastam. Veja a negociação sobre desarmamento. Está aí há 40, 50 anos.

FOLHA - Houve frustração em Copenhague por não se chegar a um acordo para conter a mudança climática. Em Roma, as discussões sobre segurança alimentar se arrastaram. Em ambas e na reunião ministerial aqui, muita agente argumentou que a OMC deveria incluir os temas em sua agenda.
LAMY - Comércio e agricultura e comércio e ambiente já estão no sistema. Segurança alimentar é um grande tema, que tem um componente de agricultura, ligado a comércio internacional. Em ambiente, temos regras, a OMC normalmente se refere ao comércio que contribua para a sustentabilidade, a medidas ambientais, temos jurisprudência.

FOLHA - Caso as negociações para a mudança climática evoluam, elas podem ter impacto real no comércio mundial?
LAMY - Houve debate sobre o impacto de cortes na emissão de carbono sobre o comércio, na questão do transporte -apesar de 90% do comércio ser pelo mar, o que tem menor impacto ambiental. A outra parte do debate é se as políticas comerciais terão de ser mudadas se houver acordo internacional sobre emissão de carbono. Isso veremos. De qualquer forma, políticas comerciais isoladas não substituem a disciplina internacional sobre emissões.

FOLHA - Há ameaça de barreiras comerciais sob justificativa de poupar o ambiente?
LAMY - Sempre há. Medidas unilaterais têm de ser tratadas dentro das regras da OMC.

FOLHA - Para usar sua expressão, o arrastamento das negociações sobre clima e Doha prejudica a credibilidade do sistema multilateral a que ponto? Mesmo sem alternativa, a credibilidade foi abalada.
LAMY - Foi, é verdade. Mas a maioria das pessoas está acostumada ao sistema político doméstico, com um Parlamento, um Executivo, a mídia informando e uma decisão da maioria no fim. O sistema internacional não funciona assim. Não tem ninguém que diga "este é o interesse geral da população".

FOLHA - Há, mas se ignora.
LAMY - Esse é meu segundo ponto. Não há essa comunicação com o público, e não há a decisão da maioria. No sistema internacional, tudo tem de ser negociado a cada vez. E hoje muito mais países se fazem ouvir. O sistema é mais complexo.
Há anos eu digo que há um abismo entre nossa capacidade de governança global, que é fraca, e a natureza global dos desafios que temos de encarar.


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