São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 2008

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ARTIGO

Os limites da liberalização

Tony Dejak/Associated Press
"Fechado por causa da economia", avisa restaurante na Flórida


MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

RECORDEM a sexta-feira, 14de março de 2008: foi o dia em que o sonho de um capitalismo de livre mercado e alcance mundial morreu. Por três décadas avançamos na direção de sistemas financeiros propelidos pelo mercado. Com sua decisão de resgatar o Bear Stearns, o Federal Reserve (Fed), instituição responsável pela política monetária dos Estados Unidos e principal defensor do capitalismo de livre mercado, decretou o fim de uma era.
O banco central americano mostrou em forma de ação sua concordância com o sentimento expresso por Joseph Ackermann, presidente-executivo do Deutsche Bank, ao declarar: "Não acredito mais que o mercado possa se curar sem interferência". A desregulamentação encontrou seu limite.
Não estou avaliando, aqui, se o Fed estava ou não certo ao resgatar o Bear Stearns da insolvência. Não sei se os riscos justificavam a decisão de não só servir como fonte de recursos de emergência ao banco de investimento como de aceitar ativos de crédito de risco no balanço do banco central. Mas os funcionários envolvidos são pessoas sérias. Devem ter tido motivos para suas ações.
Podem certamente apontar para os perigos do momento -uma crise que Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, definiu como "a mais devastadora desde o final da Segunda Guerra Mundial"- e para o papel do Bear Stearns nos frágeis mercados atuais.
Meu julgamento gira em torno das implicações da decisão do Fed. Em resumo, permitir que o Bear Stearns falisse foi considerado como risco sistêmico. Foi uma posição desenvolvida apressadamente, é fato, em um momento de crise. Mas momentos de crise são aqueles em que novas funções emergem, em especial as práticas associadas à função dos bancos centrais como fonte final de recursos do mercado, que surgiu no século 19.
As implicações da decisão são óbvias: terá de haver regulamentação muito maior dessas instituições. O Fed oferece uma forma valiosa de seguro aos bancos de investimento. Isso de fato se torna evidente tendo em vista o que aconteceu no mercado de ações desde o resgate: as ações dos demais grandes bancos de investimento subiram consideravelmente. É uma demonstração visível do risco moral. O Fed decidiu que a "greve" do mercado monetário contra os bancos de investimento era o equivalente a uma corrida a um banco comercial.
Concluiu que, por isso, tinha de abrir as torneiras monetárias em benefício dessas instituições. Regulamentação maior certamente está a caminho.
Os lobbies que servem Wall Street com certeza resistirão a onerosas regras de capitalização ou liquidez, depois que a crise passar. Podem até encontrar sucesso. Mas sua posição se tornou intelectualmente insustentável. As instituições cuja falência representaria risco sistêmico precisam pagar pela proteção oficial que recebam.
Sua capacidade de desfrutar das vantagens pelos riscos em que incorrem enquanto transferem as desvantagens à sociedade precisa ser restringida. Não se trata de questão de simples justiça (ainda que esse aspecto evidentemente importe), mas também de uma questão de eficiência. Um cassino subsidiado mas não regulamentado certamente alocará mal seus recursos. Além disso, o subsídio se aplica agora não apenas aos acionistas mas a todos os credores. Seu efeito é tornar o custo dos fundos insensatamente barato. Esses incentivos grotescamente desalinhados precisam ser corrigidos.
Lamento profundamente o fato de que o Fed tenha considerado necessário agir como agiu. No passado, eu costumava esperar que a securitização fosse capaz de transferir parte substancial dos riscos para além do sistema bancário regulamentado, no qual os governos não mais teriam de intervir. Isso se provou ilusório. Um volume imenso de empréstimos arriscados, se não escancaradamente fraudulentos, tornou muito arriscados os mercados de instrumentos securitizados. Isso prejudicou as instituições, especialmente o Bear Stearns, que operavam de maneira intensiva nesses mercados.
No entanto, o fato de que o Fed tenha estendido sua rede de segurança aos bancos de investimento não é a única razão para que a crise represente um ponto de inflexão nas atitudes quanto à liberalização financeira. A confusão no mercado da habitação dos Estados Unidos (e talvez em breve de outros países desenvolvidos) também contribuiu. Ben Bernanke, o chairman do Fed, um homem conhecido pela moderação de seus pronunciamentos, descreveu boa parte dos empréstimos hipotecários de risco ("subprime") dos últimos anos como "nem responsáveis nem prudentes", em discurso cujos detalhes são de arrepiar os cabelos. Isso, na linguagem do Fed, quer dizer "criminosos e loucos". Uma vez mais, é preciso garantir que situação semelhante não aconteça de novo, especialmente porque os prejuízos causados por esses empréstimos ao sistema financeiro podem ainda se provar enormes. O colapso nos preços das casas, a inadimplência em alta e a execução de hipotecas prejudicarão milhões de eleitores.
Os políticos não poderão ignorar a situação deles, mesmo que isso resulte em um dispendioso resgate aos imprudentes. Mas as conseqüências certamente envolverão regulamentação mais pesada do que a atual.
Se os Estados Unidos chegaram ao ponto máximo de desregulamentação financeira e estão começando a recuar, as implicações para a economia mundial mais ampla serão consideráveis. Até recentemente, era possível dizer aos chineses, aos indianos ou a quem tivesse sofrido crises financeiras significativas, nas duas últimas décadas, que existia um sistema financeiro tanto livre quanto robusto. Mas esse já não é mais o caso. Será difícil, de fato, persuadir esses países de que as falhas de mercado reveladas nos Estados Unidos e em outros países de alta renda não representam um severo alerta. Se os Estados Unidos, com sua vasta experiência e recursos, não conseguiram evitar essa armadilha, por que, eles poderiam perguntar, deveríamos nos sair melhor?
Essas implicações de prazo mais longo para as atitudes quanto aos mercados financeiros desregulamentados estão longe de ser o único motivo para que a crise atual seja considerada importante. Temos ainda de superar a crise imediata.
O colapso dos lucros financeiros (tão significativos na economia dos Estados Unidos), o "crash" nos preços das casas e uma grande elevação nos preços das commodities formam combinação que deve resultar em longa e profunda recessão.
Para enfrentar esse perigo, o Fed já reduziu as taxas de juros de curto prazo a 2,25%. Enquanto isso, o Fed também está claramente correndo o risco de uma fuga aos passivos denominados em dólares e de uma retomada na inflação. É difícil ver motivo para que os rendimentos de títulos de longo prazo do Tesouro norte-americano sejam tão baixos, excetuado o desejo de controlar o passivo do Tesouro dos EUA, o mais seguro dos emissores de títulos denominados em dólares.
Kenneth Rogoff, economista da Universidade Harvard, recentemente citou o poeta Robert Frost -"alguns dizem que o mundo terminará em fogo; outros em gelo"- para descrever os riscos de ruína financeira (fogo) e inflação (gelo) que temos de enfrentar. O momento é perigoso. O momento é também histórico. Os Estados Unidos mostraram os limites da desregulamentação. Administrar essa virada inevitável sem jogar fora o que ganhamos nas três últimas décadas é um imenso desafio. E o mesmo se aplica a sobreviver incólume ao processo de redução de endividamento que está por vir. Mas precisamos começar no lugar certo: reconhecendo que até mesmo o passado recente é uma terra estrangeira.


Tradução de PAULO MIGLIACCI



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