São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

O atacado e o varejo da diplomacia

RUBENS RICUPERO

Dizia-se de Jânio que sua diplomacia acertava no atacado, mas errava no varejo. Isto é, as intuições, as linhas mestras, eram corretas. Onde ela mancava era na execução, seja por provocações gratuitas -a condecoração do Che-; seja pela improvisação de emissários amadores que atropelavam o Itamaraty -a visita da Missão João Dantas a Berlim Oriental, que provocou a demissão do secretário-geral, embaixador Vasco Leitão da Cunha-; seja pelo personalismo excessivo, raiando no excêntrico ou no grosseiro -os bilhetinhos, o chá de cadeira a que se submeteu o embaixador Adolph Berle, emissário do presidente Kennedy.
Da política externa de Lula, pode afirmar-se que acerta muito mais do que erra e seus acertos são, em geral, nas coisas fundamentais. Era vista, por isso, com toda razão, como ilha de excelência em oceano de sargaços. De repente, contudo, generaliza-se a sensação de que ela começaria a derivar para águas turbulentas. É curioso que isso ocorra no momento em que o mais relevante -as relações com os EUA- não se deixou contaminar pelos irritantes da Alca ou de declarações sobre Chávez ou o Iraque. O reconhecimento pelos americanos do caráter pacífico do enriquecimento do urânio pelo Brasil, a visita do secretário de Defesa e, mais ainda, a nota positiva da passagem de Condoleezza Rice indicam que o problema não está no relacionamento com nosso principal parceiro e eixo da diplomacia mundial. Onde está ele, então?
Em primeiro lugar, está nos vícios de execução examinados no artigo anterior: exagero na dose de triunfalismo, de personalismo protagônico, de diplomacia paralela entre partidos, de retórica ideológica. Quanto à substância, não creio que tenham importância maior as discussões sobre o Conselho de Segurança, a cúpula com os árabes, as relações com a África. As críticas nessa área terão alguma validade no varejo -a forma, o grau de intensidade-, mas no atacado são tão improcedentes quanto as dirigidas, 40 anos atrás, ao reatamento com a URSS, à aproximação com a China, à condenação ao colonialismo. Como tais, estão destinadas à lata de lixo da história.
As dificuldades provêm de questões mais objetivas: a sensível deterioração das relações com a Argentina, a maneira como ela se superpõe à crise que se arrasta no Mercosul, a falta de resultados no esforço de ampliar o acesso aos dois maiores mercados mundiais, o dos EUA e o da Europa, por meio da fórmula, talvez equivocada, de acordos preferenciais improváveis e desequilibrados. Realimenta-se, assim, a velha acusação de que o Itamaraty e o governo privilegiam prioridades "erradas" -o Oriente Médio, a África, os mercados dos "pobres"- ou metas políticas como o Conselho de Segurança, julgadas irrealistas, irrelevantes ou pouco práticas pelos críticos. Embora descabido, esse tipo de sensação ganha aparência de verdade devido ao cansaço da opinião pública, no Brasil e alhures, com a multiplicação de cúpulas, reuniões de alto nível, formação de grupos e coalizões, cuja razão de ser parece às vezes esgotar-se na realização de um só encontro e em declarações que poucos lerão.
Nem tudo é mera percepção subjetiva que se dissolve no ar. Existem problemas concretos, e reconhecer essa realidade não significa atribuir a culpa ao governo brasileiro. Alguns ou muitos desses problemas não terão sido criados por nós, mas o simples fato de continuarem sem solução perpetua o mal-estar e a frustração. A tarefa dos contestadores tem sido facilitada por erros desnecessários, como a candidatura, ao mesmo tempo tardia e precipitada, à direção da OMC. Seria bem-vinda uma autocrítica que examine o processo pelo qual se tomam decisões como essas, que afetam a imagem de competência e profissionalismo do Itamaraty, abrindo-lhe o flanco para que se questione também aquilo que não merece ser questionado. Impõe-se igualmente exame cuidadoso dos elementos de cada questão controversa, o que tenciono fazer em série de artigos que ora inicio. Até mesmo para concluir -quem sabe?- que, não obstante nossos melhores esforços, é possível que alguns desses problemas subsistam por dependerem não só de nossa (boa) vontade mas da alheia. Afinal, em alguns desses casos, poderá-se dizer com absoluta pertinência que "It takes two to tango".


Rubens Ricupero, 68, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

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