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OPINIÃO ECONÔMICA
O atacado e o varejo da diplomacia
RUBENS RICUPERO
Dizia-se de Jânio que sua diplomacia acertava no atacado, mas errava no varejo. Isto
é, as intuições, as linhas mestras,
eram corretas. Onde ela mancava
era na execução, seja por provocações gratuitas -a condecoração do Che-; seja pela improvisação de emissários amadores
que atropelavam o Itamaraty
-a visita da Missão João Dantas
a Berlim Oriental, que provocou
a demissão do secretário-geral,
embaixador Vasco Leitão da Cunha-; seja pelo personalismo excessivo, raiando no excêntrico ou
no grosseiro -os bilhetinhos, o
chá de cadeira a que se submeteu
o embaixador Adolph Berle,
emissário do presidente Kennedy.
Da política externa de Lula, pode afirmar-se que acerta muito
mais do que erra e seus acertos
são, em geral, nas coisas fundamentais. Era vista, por isso, com
toda razão, como ilha de excelência em oceano de sargaços. De repente, contudo, generaliza-se a
sensação de que ela começaria a
derivar para águas turbulentas. É
curioso que isso ocorra no momento em que o mais relevante
-as relações com os EUA- não
se deixou contaminar pelos irritantes da Alca ou de declarações
sobre Chávez ou o Iraque. O reconhecimento pelos americanos do
caráter pacífico do enriquecimento do urânio pelo Brasil, a visita do secretário de Defesa e,
mais ainda, a nota positiva da
passagem de Condoleezza Rice
indicam que o problema não está
no relacionamento com nosso
principal parceiro e eixo da diplomacia mundial. Onde está ele,
então?
Em primeiro lugar, está nos vícios de execução examinados no
artigo anterior: exagero na dose
de triunfalismo, de personalismo
protagônico, de diplomacia paralela entre partidos, de retórica
ideológica. Quanto à substância,
não creio que tenham importância maior as discussões sobre o
Conselho de Segurança, a cúpula
com os árabes, as relações com a
África. As críticas nessa área terão alguma validade no varejo
-a forma, o grau de intensidade-, mas no atacado são tão improcedentes quanto as dirigidas,
40 anos atrás, ao reatamento
com a URSS, à aproximação com
a China, à condenação ao colonialismo. Como tais, estão destinadas à lata de lixo da história.
As dificuldades provêm de
questões mais objetivas: a sensível deterioração das relações com
a Argentina, a maneira como ela
se superpõe à crise que se arrasta
no Mercosul, a falta de resultados
no esforço de ampliar o acesso
aos dois maiores mercados mundiais, o dos EUA e o da Europa,
por meio da fórmula, talvez equivocada, de acordos preferenciais
improváveis e desequilibrados.
Realimenta-se, assim, a velha
acusação de que o Itamaraty e o
governo privilegiam prioridades
"erradas" -o Oriente Médio, a
África, os mercados dos "pobres"- ou metas políticas como
o Conselho de Segurança, julgadas irrealistas, irrelevantes ou
pouco práticas pelos críticos. Embora descabido, esse tipo de sensação ganha aparência de verdade devido ao cansaço da opinião
pública, no Brasil e alhures, com
a multiplicação de cúpulas, reuniões de alto nível, formação de
grupos e coalizões, cuja razão de
ser parece às vezes esgotar-se na
realização de um só encontro e
em declarações que poucos lerão.
Nem tudo é mera percepção
subjetiva que se dissolve no ar.
Existem problemas concretos, e
reconhecer essa realidade não
significa atribuir a culpa ao governo brasileiro. Alguns ou muitos desses problemas não terão sido criados por nós, mas o simples
fato de continuarem sem solução
perpetua o mal-estar e a frustração. A tarefa dos contestadores
tem sido facilitada por erros desnecessários, como a candidatura,
ao mesmo tempo tardia e precipitada, à direção da OMC. Seria
bem-vinda uma autocrítica que
examine o processo pelo qual se
tomam decisões como essas, que
afetam a imagem de competência e profissionalismo do Itamaraty, abrindo-lhe o flanco para
que se questione também aquilo
que não merece ser questionado.
Impõe-se igualmente exame cuidadoso dos elementos de cada
questão controversa, o que tenciono fazer em série de artigos
que ora inicio. Até mesmo para
concluir -quem sabe?- que,
não obstante nossos melhores esforços, é possível que alguns desses problemas subsistam por dependerem não só de nossa (boa)
vontade mas da alheia. Afinal,
em alguns desses casos, poderá-se
dizer com absoluta pertinência
que "It takes two to tango".
Rubens Ricupero, 68, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto
Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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