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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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LUÍS NASSIF

O medo brasileiro

A beatriz , minha filha de cinco anos, me disse outro dia que acorda de noite com medo, por causa de "sonho ruim". A Mariana, de 23, também passou por esses medos. Mas tinha uma babá que a embalava ao som de "boi, boi, boi do curá / pega essa menina que não quer mamá".
O medo sempre fez parte da nossa cultura. Foi companhia permanente das nossas infâncias, muitas vezes trazido por babás e empregadas e suas histórias maravilhosas.
Menino ainda, provavelmente com a idade da Beatriz, tinha "sonhos ruins". Imaginava o vendedor de amendoim fazendo plantão na frente de casa, em plena madrugada. A casa, então, não tinha grades e dava para o largo do São Benedito, um enorme terreiro onde, nos meses de abril e maio, os congos traziam seus cantos rituais. Mas nem os espíritos dos congos que povoavam o São Benedito nos protegiam do medo do vendedor de amendoim.
Espalhou-se na época que o vendedor de amendoim era "tarado". A gente imaginava que ele entregava amendoim enfeitiçado para os meninos, que, depois de ficar grogues, eram algemados e chicoteados. Nosso conceito de tarado não ia muito além disso.
Quando minha avó Martha e minha tia-avó Mariana se reuniam com minha mãe, aí o medo e a tragédia corriam soltos. Eu ficava encolhido enquanto elas contavam a história da linda normalista de São Paulo, que pegou o ônibus para casa, foi seguida por um marginal que a matou. Os crimes eram tão escassos na época que cada qual rendia uma novela caseira. São Francisco de Assis e o Sagrado Coração de Jesus me ajudaram a enfrentar os pesadelos que sempre se seguiam aos "causos" das três.
Nos anos 50, em Poços de Caldas, estávamos a léguas de distância de ter medo de ET. Nosso medo era concreto, de personagens que habitavam as fazendas -como sacis, caiporas, lobisomens e mulas-sem-cabeça. Tio Zito Vilela quase quebrou quando descobriram uma criação de sacis em sua fazenda em São Sebastião da Grama e houve uma debandada de colonos.
A história da região começou a mudar lá pelo início dos anos 70. Fui a São Tomé das Letras a serviço, por ocasião daquele fiasco que foi a visita do cometa Kohoutec, para saber o que os moradores achavam do astro, da perspectiva de fim do mundo e dos teosofistas que se mudaram para lá atrás de uma carona de disco voador, antes que o tal do mundo se acabasse.
Subi a pedreira, abri a porta da igreja, dei de cara com a pintura de um barão de olhar alucinado. Ao lado, uma velhinha quase nonagenária que tomava conta da igreja. Indaguei se era verdadeira a história. "É verdade", confirmou. "E eles viram algum disco voador." A velhinha, taxativa: "Nenhum". "E a senhora, já viu algum?" E ela, com ar de enfado por trás das lentes grossas dos óculos: "Eu? Estou cansada de ver".
Foi o período em que os sacis começavam a ser expulsos do sul de Minas pelos discos voadores. Era o prenúncio do ET de Varginha.
Com o tempo, esses medos maravilhosos, mágicos, parte intrínseca da cultura brasileira, parte essencial de um país que ainda não se urbanizara, vão cedendo lugar a outras formas, mais contemporâneas e cruéis de medo.
Primeiro, o medo de enfrentar a metrópole, a primeira profissão, o medo das primeiras opções de vida. Em muitos, vi o medo do desemprego.
Nos anos 70, havia o medo permanente da tortura, pelo menos na nossa profissão.
E quem era o pai que nos confortava a todos? Quem me refresca a memória é o leitor Celso Dival Moreira Lima, que me enviou e-mail sobre o caso Galdino, desses de a gente guardar para sempre, sobre a necessidade da coragem para enfrentar o estabelecido, a unanimidade e a sede de sangue: "O maior cristão, talvez o único que eu conheço é Dom Paulo Evaristo Arns, que teve até parte da sua igreja voltando-se contra ele por ser o porta-voz dos oprimidos. Um preso político certa vez comentou: "Ele colocava a mão em meus ombros e falava apenas três palavras: coragem, coragem, coragem". Essa é a única oração que eu até hoje aprendi".



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