São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008

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ALEXANDRE SCHWARTSMAN

De fato e ficção


O câmbio flutuante agora absorve parcela relevante da piora do ambiente externo

UMA CARACTERÍSTICA central dos nossos heterodoxos é a permanente recusa a confrontar suas afirmações com os dados. Em suas análises, a realidade é sempre um problema a ser cuidadosamente evitado, como transparece na apreciação heterodoxa dos efeitos da crise internacional sobre o Brasil. Segundo esta, o país sofre por ter permitido que a moeda flutuasse, ao contrário de países que evitaram a apreciação de suas moedas, apesar da melhora de seus termos de troca. Mesmo as reservas acumuladas nos últimos anos não serviriam de proteção, supostamente por não terem se originado de superávits em conta corrente, mas sim do endividamento externo. A distância entre essas afirmações e a realidade, no entanto, só pode ser medida em parsecs.
A começar porque, a despeito dos devaneios heterodoxos, a crise não tem poupado nenhum país emergente. Pelo contrário, os países que mais têm sofrido em termos de piora da sua percepção de solvência são exatamente aqueles que nossos keynesianos de quermesse tomavam (ainda tomam?) como exemplo. A Argentina, que pré-crise pagava cerca de 6% anuais a mais do que um título de cinco anos do Tesouro norte-americano para emitir seus papéis, passou a pagar 48% ao ano. No caso da Rússia, o aumento, na mesma base de comparação, foi de 1% ao ano para 9% ao ano, a despeito de seu superávit em conta corrente superior a US$ 100 bilhões nos 12 meses até junho deste ano.
As reservas russas -aliás, que, pelo critério heterodoxo, seriam presumidamente estáveis por resultarem da acumulação de superávits em conta corrente- já caíram de US$ 596 bilhões para US$ 453 bilhões entre 31 de julho e 14 deste mês, uma redução de aproximadamente 25%, quase toda ocorrida nos últimos 45 dias.
No caso brasileiro, isso seria equivalente a uma redução de US$ 207 bilhões para US$ 155 bilhões. Em contraste, no conceito de liquidez internacional, nossas reservas alcançavam, na última sexta-feira, US$ 206 bilhões, praticamente intocadas, a despeito da virulência da crise e de sua suposta instabilidade por terem sido, Tupã nos perdoe, "construídas com base em endividamento externo".
Da mesma forma que o câmbio flutuante mitigou o efeito do aumento de preços de commodities sobre a inflação, ele agora absorve parcela relevante da piora do ambiente externo. A diferença, porém, com relação a episódios anteriores de deterioração do ambiente internacional e conseqüente depreciação da moeda é que agora não só o setor público se tornou credor em moeda estrangeira como a maior parte do passivo externo líquido do país consiste de investimento estrangeiro, o que passa o risco da desvalorização da moeda em larga medida para o investidor externo.
Em que pesem os efeitos (aparentemente esgotados) dos derivativos cambiais sobre as empresas privadas, o BC brasileiro pode permitir que a moeda flutue, preservando as reservas (e, portanto, a solvência externa), ao mesmo tempo em que os ganhos sobre essas ajudam a reduzir a dívida pública, melhorando a solvência doméstica. Não por acaso, em contraste com os modelos heterodoxos, nosso risco-país cresceu relativamente pouco, de 1% ao ano para 4,3% ao ano, mais por conta da piora geral do que algum problema específico no Brasil.
Contra esse pano de fundo, só mesmo a duradoura "privação momentânea de sentidos", tão particular aos keynesianos de quermesse, pode explicar a insistente louvação a um modelo que está levando países que o adotaram a uma crise financeira de grandes proporções. Para heterodoxos, contra a ficção não há argumentos.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 45, é economista-chefe para América Latina do Banco Santander, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
Internet: http://www.maovisivel.blogspot.com/

alexandre.schwartsman@hotmail.com


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