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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma reforma anacrônica?

RUBENS RICUPERO

Anacrônico, do ponto de vista etimológico, é algo fora do seu tempo próprio. Em geral, é usado para significar que alguma coisa se atrasou e está sendo feita agora, quando deveria ter sido realizada havia muito tempo. Foi nesse sentido que o senador Nabuco de Araujo, o "Estadista do Império" do livro escrito por seu filho, se referia, em 1870, à abolição gradual da escravatura: "Senhores, esse negócio é muito grave, é a questão mais importante da sociedade brasileira (...). O pouco serve hoje, o muito amanhã não basta. As coisas políticas têm por principal condição a oportunidade. As reformas, por poucas que sejam, valem muito na ocasião, não satisfazem depois, ainda que sejam amplas". Apesar da sabedoria das palavras, teve-se de esperar 18 anos pela abolição plena.
Em 1985, quando começava o governo Sarney e o congresso da Contag -não se falava tanto em MST- reclamava reforma agrária "maciça", o principal economista agrícola brasileiro, Fernando Homem de Melo, escrevia na "Gazeta Mercantil" dois artigos para mostrar que medida com tamanho grau de radicalidade e abrangência só teria se justificado se tivesse sido feita no passado. O ideal é que a reforma houvesse ocorrido no auge da industrialização brasileira ou após a adoção do Estatuto da Terra, do marechal Castello Branco. Antes, de qualquer modo, da modernização da agricultura no Brasil, de sua radical transformação em atividade altamente capitalizada, intensiva em tecnologia e responsável quase exclusiva pelos melhores êxitos da exportação. Mexer nisso de forma "maciça" naquele instante seria desorganizar o setor talvez mais estratégico do comércio exterior. Restava, segundo o autor, a possibilidade de promover reforma "seletiva" em áreas de conflito agudo ou desaproveitadas.
Quem leu os artigos na época deve tê-los achado razoabilíssimos. Por que, com efeito, convulsionar a agricultura se, de perspectiva estritamente econômica, ela estava preenchendo à risca o seu papel, que é produzir alimentos para a população urbana, gerar divisas para a importação de bens de capital necessários à industrialização, assim como excedente de capital e mão-de-obra para a indústria? Com o tempo, a queda nas taxas demográfica e de fertilidade, o êxodo rural, o alívio da pressão no interior fariam o resto, levando a que prevalecesse no campo panorama semelhante ao dos países avançados: propriedades cada vez maiores trabalhadas por cada vez menos gente. Quem imaginaria que, 18 anos mais tarde, os conflitos agrários estariam explodindo, em vez de desaparecerem, e o MST se teria convertido num dos movimentos de massa mais impressionantes de nossa história?
Ora, nesse período, a agricultura tornou-se incomparavelmente mais moderna e produtiva, a ponto de ganhar foros de nobreza e adotar o desgracioso neologismo de "agronegócio". A demografia não ficou atrás e se desacelerou bruscamente. O que foi, então, que deu errado? O problema é que o país deixou de crescer, após a crise da dívida, antes mesmo da data dos artigos, demolindo a premissa e condição básica da argumentação. Sem crescimento, a indústria não foi mais capaz de absorver o excesso de mão-de-obra expulsa das fazendas pela mecanização, o gado, a soja em larga escala. Até em cidades médias do interior formaram-se cinturões de bóias-frias, com emprego apenas sazonal, reservatório inesgotável de recrutamento dos sem-terra.
Conforme disse Celso Furtado, o desenvolvimento brasileiro é uma "construção interrompida". Pior, pode ser comparado a um fruto, a um organismo vivo, que encruou antes de amadurecer. No desenvolvimento saudável, ao declinar o emprego na agricultura, a indústria, em plena expansão, consome vorazmente os trabalhadores excedentes, tendo às vezes até de recorrer a estrangeiros, como na Alemanha e na França de 1950 a 1970. Chega então o momento em que a economia começa naturalmente a desindustrializar-se. Nessa hora, graças à enorme produtividade industrial, já se atingiu nível de renda alto o bastante a fim de garantir demanda para empregar nos serviços os que deixaram de trabalhar nas fábricas.
No Brasil e na América Latina, não é essa modalidade sã que está acontecendo, mas a desindustrialização precoce, a indústria que morreu na praia, antes de ter logrado gerar o nível de renda per capita exigido pela economia de serviços. Os setores industriais remanescentes só conseguem manter o nariz fora da água graças a ganhos de produtividade obtidos com as despedidas maciças. O desenvolvimento truncado traz como subprodutos o exército de reserva dos bóias-frias exigindo voltar à agricultura, os ex-operários que formam o essencial dos 13% de desempregados do país e os 20% da Grande São Paulo, as massas de camelôs que ocupam praças e ruas, os incontáveis trabalhadores informais que vivem de biscates. Deixo de fora as óbvias implicações em termos de violência, drogas, crime.
Essa situação não é imposta pela natureza das coisas. É consequência de escolha política, a de resignar-se à armadilha financeira externa e interna, à ditadura dos mercados de dinheiro. Delas só se sai com taxas de crescimento altas, de mais de 5% ou 6% por anos a fio. Como tais taxas não são geralmente aceitáveis aos mercados financeiros, os que deles fazem os árbitros de última instância condenam a sociedade, mesmo sem querer, a um destino de desumanização e barbarismo. E, nesse futuro de sangue e lágrimas, por mais que o Incra distribua lotes, por mais que se reduza a taxa demográfica, a fila dos invasores de terras e prédios não cessará de ser engrossada pela única indústria ainda eficiente: a usina de produção de pobres e desesperados.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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