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Carta da Índia não diz que Brasil se vendeu
Interpretação é apenas uma inferência sobre participação do país nas negociações da Rodada Doha
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A carta que o ministro indiano do Comércio, Kamal Nath,
enviou ao diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, em momento
algum acusa o Brasil de ter se
vendido aos EUA e à União Européia, durante as desesperadas negociações de julho para
tentar salvar a Rodada Doha.
A interpretação de que houve
essa operação de venda -em
troca de acesso do álcool combustível brasileiro aos dois
maiores mercados do mundo-
foi uma inferência diante de
um conjunto de circunstâncias.
Primeira delas: a carta de fato
existe. Mas o Brasil é mencionado de forma periférica.
O eixo do documento é defender a Índia das acusações de
que fora intransigente, afundando, assim, as negociações de
julho.
Aliás, uma nova rodada, na
semana passada (negociada por
"altos funcionários", no jargão
da OMC, representantes dos
ministros), também naufragou
-e de novo os dedos acusadores apontaram para a Índia.
Houve até um episódio bizarro. Quando se discutia de novo
a permissão para que países como a Índia, importadores de
alimentos, adotassem salvaguardas especiais em caso de
explosão de importações, houve um acordo quase geral.
Mas o delegado indiano disse
que teria de consultar o chefe
(Kamal Nath, o ministro).
Foi numa sexta-feira. Nos
dois dias seguintes, o indiano
dizia a seus colegas que não
conseguia contato telefônico
com Nath.
Até que, na segunda-feira, o
representante da União Européia, ao relatar as discussões,
por telefone, a seu chefe (Peter
Mandelson, comissário do Comércio), contou a história da
consulta que não se dava.
Mandelson retrucou: "Fique
na linha que, do outro telefone,
vou tentar falar com Kamal
Nath". Conseguiu em instantes. Quando o delegado europeu contou o episódio aos colegas, inclusive ao indiano, o representante da Índia esbravejou e a discussão terminou,
mais uma vez sem definições.
Na carta, Kamal Nath diz que
a Índia não é única culpada e
que o tema das salvaguardas
tampouco é o único obstáculo
para fechar um acordo que tiraria do pântano a Rodada Doha,
iniciada em 2001 na capital do
Qatar e bloqueada desde então.
Sobre o Brasil, diz apenas que
está em "posição mais confortável" [que a da Índia] para adotar o comportamento que adotou, ou seja, abandonar o G20
para aceitar a proposta feita pelo comando da OMC e que
agradou os países ricos.
Segunda circunstância a facilitar a inferência de que o Brasil
se vendeu: nas negociações de
julho, o governo e o setor privado de fato negociaram com europeus e norte-americanos
uma cota para a exportação de
álcool combustível.
Os Estados Unidos foram inflexíveis, mas Mandelson ofereceu uma cota de 1,4 milhão de
toneladas por ano até 2020,
com tarifa de 10%. Mas a Unica
(União da Indústria de Cana-de-Açúcar) criticou a concessão e defendeu a "plena integração" do álcool ao sistema
mundial de comércio.
Fica claro que a mudança de
posição do Brasil não se deveu a
uma eventual cota apetitosa.
Deveu-se, segundo o ministro
das Relações Exteriores, Celso
Amorim, à percepção de que o
país teria ganhos importantes
com a oferta então posta à mesa
e que não havia espaço para
melhorá-la mais.
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