São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008

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Carta da Índia não diz que Brasil se vendeu

Interpretação é apenas uma inferência sobre participação do país nas negociações da Rodada Doha

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A carta que o ministro indiano do Comércio, Kamal Nath, enviou ao diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, em momento algum acusa o Brasil de ter se vendido aos EUA e à União Européia, durante as desesperadas negociações de julho para tentar salvar a Rodada Doha.
A interpretação de que houve essa operação de venda -em troca de acesso do álcool combustível brasileiro aos dois maiores mercados do mundo- foi uma inferência diante de um conjunto de circunstâncias.
Primeira delas: a carta de fato existe. Mas o Brasil é mencionado de forma periférica.
O eixo do documento é defender a Índia das acusações de que fora intransigente, afundando, assim, as negociações de julho.
Aliás, uma nova rodada, na semana passada (negociada por "altos funcionários", no jargão da OMC, representantes dos ministros), também naufragou -e de novo os dedos acusadores apontaram para a Índia.
Houve até um episódio bizarro. Quando se discutia de novo a permissão para que países como a Índia, importadores de alimentos, adotassem salvaguardas especiais em caso de explosão de importações, houve um acordo quase geral.
Mas o delegado indiano disse que teria de consultar o chefe (Kamal Nath, o ministro).
Foi numa sexta-feira. Nos dois dias seguintes, o indiano dizia a seus colegas que não conseguia contato telefônico com Nath.
Até que, na segunda-feira, o representante da União Européia, ao relatar as discussões, por telefone, a seu chefe (Peter Mandelson, comissário do Comércio), contou a história da consulta que não se dava.
Mandelson retrucou: "Fique na linha que, do outro telefone, vou tentar falar com Kamal Nath". Conseguiu em instantes. Quando o delegado europeu contou o episódio aos colegas, inclusive ao indiano, o representante da Índia esbravejou e a discussão terminou, mais uma vez sem definições.
Na carta, Kamal Nath diz que a Índia não é única culpada e que o tema das salvaguardas tampouco é o único obstáculo para fechar um acordo que tiraria do pântano a Rodada Doha, iniciada em 2001 na capital do Qatar e bloqueada desde então.
Sobre o Brasil, diz apenas que está em "posição mais confortável" [que a da Índia] para adotar o comportamento que adotou, ou seja, abandonar o G20 para aceitar a proposta feita pelo comando da OMC e que agradou os países ricos.
Segunda circunstância a facilitar a inferência de que o Brasil se vendeu: nas negociações de julho, o governo e o setor privado de fato negociaram com europeus e norte-americanos uma cota para a exportação de álcool combustível.
Os Estados Unidos foram inflexíveis, mas Mandelson ofereceu uma cota de 1,4 milhão de toneladas por ano até 2020, com tarifa de 10%. Mas a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) criticou a concessão e defendeu a "plena integração" do álcool ao sistema mundial de comércio.
Fica claro que a mudança de posição do Brasil não se deveu a uma eventual cota apetitosa. Deveu-se, segundo o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, à percepção de que o país teria ganhos importantes com a oferta então posta à mesa e que não havia espaço para melhorá-la mais.


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