São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2008

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ARTIGO

Admirável mundo novo

O mundo vai mudar com a crise; assim, o substitutivo da reforma tributária aprovado pela Comissão Especial tem de ser discutido com cuidado na Câmara

MAURO RICARDO COSTA
JOAQUIM LEVY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Agora, que uma nova ordem econômica parece se iniciar, talvez poucos se lembrem do Gatt ("General Agreement on Tariffs and Trade"), uma relíquia do pós-guerra, superada pela OMC e a Rodada Doha.
Mas os ecos do Gatt continuam muito vivos no Brasil, graças a uma controvérsia tributária que se arrasta há anos.
Trata-se da "total extinção em 30/6/1983" do crédito-prêmio do IPI nas exportações, previsto no decreto-lei nº 1.658/79, publicado para alinhar o Brasil com o Gatt. Por conta da redação infeliz em uma medida subseqüente, essa extinção é contestada até hoje na Justiça, o que criou um passivo contingente para a União de bilhões de reais, ainda sem solução definitiva.
A saga do crédito-prêmio serve de alerta quando são discutidas mudanças radicais em tributos. Não é o único caso de reformas bem-intencionadas que tropeçaram no Judiciário.
O Finsocial -considerado inconstitucional, porque na visão da Justiça não respondia nem aos requisitos de imposto nem de contribuição social- apenas reforça esse ponto. Qual o risco e as conseqüências de um IVA federal ser contestado e desaparecer? É difícil de medir, mas traria perdas tanto para a União como para os Estados. O risco para os Estados poderia chegar a R$ 15 bilhões, concentrado nas regiões mais carentes, que são as que ficam com a maior parte do Fundo de Participação dos Estados. Concretamente, se amanhã o IVA federal cair, nem todo o dinheiro do Seguro de Receitas sonhado na reforma vai compensar os Estados que tiverem o repasse do FPE afetado.
Deputados e governadores devem considerar esse e outros riscos antes da votação do substitutivo da reforma tributária aprovado pela Comissão Especial da Câmara. Esse substitutivo reflete um trabalho de ourives do relator, que, com grande sensibilidade, traduziu um sem-número de demandas dos Estados, de empresários e de outros interessados.
Em várias ocasiões, essa sensibilidade levou o relator a se afastar da linha originalmente proposta pelo Ministério da Fazenda, como na alteração do equilíbrio no Confaz. O substitutivo também apresenta um grau de tolerância com a guerra fiscal, inclusive pela abertura de uma temporada para a criação de novos incentivos, que diverge da expectativa da Fazenda e do objetivo maior da própria reforma.
A incorporação das preocupações dos atores econômicos também resultou em um substitutivo relativamente longo e complexo, com cerca de 400 dispositivos. Nesse sentido, a proposta da Câmara dos Deputados difere muito daquela do Senado.
Como tem sublinhado o senador Francisco Dornelles, a reforma não deveria engessar ainda mais a Constituição Federal, com detalhes quase casuísticos, mas sim estabelecer as linhas mestras do edifício tributário brasileiro do século 21. A intuição de Dornelles mostrou-se fenomenalmente correta com a eclosão da atual crise na economia mundial.
O mundo vai mudar com a crise. Daí, a indagação se seria oportuno regulamentar detalhadamente o marco tributário do Brasil diante de transformações imprevistas. Vale notar que a reforma só terá efeito em dois ou três anos, ou seja, nesse novo mundo. Um mundo ainda desconhecido, mas onde a flexibilidade será cada vez mais importante.
O substitutivo também pode implicar algum retrocesso. Sabe-se, por exemplo, que, entre os avanços conseguidos na presente administração da Fazenda, incluídos na proposta original, está a possibilidade de tributação diferenciada do lucro do setor financeiro.
Mas onde o Ministério da Fazenda havia previsto uma sintonia fina, distinguindo bancos de lojas, fábricas de software ou confecções, o substitutivo impõe um ordenamento único.
A aplicação da mesma régua para tributar o lucro dos bancos e as outras empresas tenderá a aumentar a alíquota sobre o setor produtivo. Além dessa provável transferência da carga fiscal para o setor real, o substitutivo restringe a iniciativa do governo de ajustar tributos.
Nenhuma das considerações acima retira valor do substitutivo, mas todas apontam para a importância de ele ser discutido com cuidado na Câmara. É uma discussão que deve envolver os Estados e ser bem apreendida pelos setores econômicos, os quais não devem limitar sua análise à inclusão ou não de um dispositivo que lhes atenda diretamente. O todo nesse tipo de projeto é mais importante do que as partes.
Por isso, a votação intempestiva do substitutivo pode apenas significar a necessidade de ele voltar com grandes mudanças ao passar pelo Senado, adiando de maneira imprevisível a aprovação da reforma tributária que todos desejamos.

MAURO RICARDO COSTA e JOAQUIM LEVY são secretários de Fazenda dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, respectivamente.



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