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OPINIÃO ECONÔMICA
Muita fantasia sobre um único assunto
JOSÉ ELI DA VEIGA
O Brasil foi o país que mais
faturou com exportações de
frango em 2003. Excelente resultado em ramo de razoável valor
agregado, quase exceção na pauta agroexportadora. Proeza cujos
louros são atribuídos a firmas
com marcas bem conhecidas, como Sadia ou Perdigão. Nada mais
justo. Mas não seria razoável
lembrar também os fornecedores? Afinal, quem produz a "matéria-prima" que essas empresas
"transformam" são cerca de 30
mil avicultores, 97% dos quais
granjeiros familiares. Na base de
tão competitiva cadeia produtiva
do agribusiness o que se encontra
é a tão menosprezada agricultura
familiar...
O exemplo aponta um dos mais
grotescos preconceitos discriminatórios instalados nos cérebros
de formadores de opinião: a imagem de que a agricultura familiar
seria "rudimentar", sem competitividade, comparável à dos fazendeiros, os únicos inseridos em
agronegócios. Ora, em toda parte
o agribusiness é composto por
um conjunto heterogêneo de cadeias produtivas, cujos elos primários contam com inúmeros tipos de agricultores e pecuaristas,
majoritariamente de caráter familiar. Daí por que é pura bobagem contrapor agricultura familiar a agronegócio.
Mas não é esse o principal preconceito. Pior é opor a agricultura familiar a uma outra que seria
"empresarial". Ainda mais neste
país, onde a lei classifica as empresas pelo volume da receita
bruta anual. É pequena empresa
toda pessoa jurídica ou firma
mercantil individual que não tenha receita bruta superior a R$
1,2 milhão por ano. Então, por
que dizer que só são empresas
agropecuárias as que faturam
muito mais do que isso? Por que
só considerar empresa uma pessoa jurídica com empregados,
como é a fazenda que no imaginário elitista seria a única capaz
de se tornar competitiva?
A rigor, os estabelecimentos
agrícolas que não devem ser considerados empresariais são os de
auto-abastecimento, que costumam gastar mais do que recebem. Situação de 20% dos quase
5 milhões de recenseados. Mas isso não acontece apenas com os
familiares. Entre 785 mil fazendas tocadas com mão-de-obra
contratada, quase um terço (242
mil) também tinha renda bruta
negativa em 1995/6. Ou seja, nem
todos os 750 mil sítios familiares
ditos "de subsistência" são necessariamente moradias de safristas.
E aqui se esbarra em outra superstição: a fantasia de que não
existe agricultura "patronal".
Chega a ser engraçado, pois é óbvio ululante que a estrutura sindical tem uma história construída
justamente sobre a dicotomia entre sindicatos de trabalhadores,
que aglutinam todas as categorias de agricultores familiares
com todos os gêneros de peões, e
sindicatos rurais, controlados pelos donos das fazendas tocadas
com mão-de-obra contratada.
Repudiar a expressão agricultura
patronal é tentar negar um elementar fato da realidade do setor,
além de esquisito reforço ao mito
de que o Brasil rural seria apanágio dos agricultores, como pretende a bancada ruralista. Nada
mais falso, pois a agricultura já
não é o setor predominante da
economia rural do Sul-Sudeste e
nunca passou de apêndice no outro extremo, a região Norte.
Como explicar, então, que exista tanta quimera sobre um único
tema? Haverá outro assunto em
que o simples uso de algumas expressões revele tanto preconceito? Só pode ser ideologia no pior
sentido da palavra. Naquele dado
por Bobbio à "falsa consciência".
Uma ideologia que sempre se
opôs, e sempre se oporá, à conquista de mais oportunidades de
acesso à propriedade da terra pelo chamado "andar de baixo". No
passado foi vigorosa no Parlamento graças a notáveis aristocratas, como o célebre senador
Vergueiro. Deixou, contudo, tão
vulgares herdeiros que nem vale
a pena lembrar os nomes. Formam a "aliança do atraso", como
diz José de Souza Martins.
O leitor certamente também
identificará a influência dessa
ideologia nas ferozes diatribes
lançadas na imprensa contra o
"Plano Rossetto", resultado de
uma redução de 60% das metas
(e também das páginas) da "Proposta Sampaio". Duvidoso nesse
plano é se haverá orçamento e capacidade operacional para franquear acesso à terra a cerca de 400
mil famílias até 2006. A experiência anterior mostra que -com
dinheiro e empenho- o Incra
consegue assentar umas 100 mil
famílias por ano. E sem garantir
qualidade, é bom que se diga,
pois isso depende de inúmeras
outras variáveis locais, que extrapolam as atribuições e competências do órgão fundiário.
Todavia são obstáculos superáveis se Lula quiser mesmo dar
resposta ao clamor de seus companheiros acossados por inexorável desemprego engendrado
pela modernização das colheitas.
Nada se compara a uma boa política de assentamentos se o critério for o combate à pobreza rural
por criação de novas oportunidades de ocupação e de geração de
renda.
José Eli da Veiga, 55, professor titular
da FEA-USP, é autor de capítulos em três
livros de 2003: "Meio Ambiente no Século 21" (Sextante), "Economia do Meio
Ambiente" (Campus) e "Patrimônio Ambiental Brasileiro" (Edusp).
Internet: www.econ.fea.usp.br/zeeli/
Hoje, excepcionalmente, a coluna
de Antonio Barros de Castro não
é publicada.
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