São Paulo, quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Muita fantasia sobre um único assunto

JOSÉ ELI DA VEIGA

O Brasil foi o país que mais faturou com exportações de frango em 2003. Excelente resultado em ramo de razoável valor agregado, quase exceção na pauta agroexportadora. Proeza cujos louros são atribuídos a firmas com marcas bem conhecidas, como Sadia ou Perdigão. Nada mais justo. Mas não seria razoável lembrar também os fornecedores? Afinal, quem produz a "matéria-prima" que essas empresas "transformam" são cerca de 30 mil avicultores, 97% dos quais granjeiros familiares. Na base de tão competitiva cadeia produtiva do agribusiness o que se encontra é a tão menosprezada agricultura familiar...
O exemplo aponta um dos mais grotescos preconceitos discriminatórios instalados nos cérebros de formadores de opinião: a imagem de que a agricultura familiar seria "rudimentar", sem competitividade, comparável à dos fazendeiros, os únicos inseridos em agronegócios. Ora, em toda parte o agribusiness é composto por um conjunto heterogêneo de cadeias produtivas, cujos elos primários contam com inúmeros tipos de agricultores e pecuaristas, majoritariamente de caráter familiar. Daí por que é pura bobagem contrapor agricultura familiar a agronegócio.
Mas não é esse o principal preconceito. Pior é opor a agricultura familiar a uma outra que seria "empresarial". Ainda mais neste país, onde a lei classifica as empresas pelo volume da receita bruta anual. É pequena empresa toda pessoa jurídica ou firma mercantil individual que não tenha receita bruta superior a R$ 1,2 milhão por ano. Então, por que dizer que só são empresas agropecuárias as que faturam muito mais do que isso? Por que só considerar empresa uma pessoa jurídica com empregados, como é a fazenda que no imaginário elitista seria a única capaz de se tornar competitiva?
A rigor, os estabelecimentos agrícolas que não devem ser considerados empresariais são os de auto-abastecimento, que costumam gastar mais do que recebem. Situação de 20% dos quase 5 milhões de recenseados. Mas isso não acontece apenas com os familiares. Entre 785 mil fazendas tocadas com mão-de-obra contratada, quase um terço (242 mil) também tinha renda bruta negativa em 1995/6. Ou seja, nem todos os 750 mil sítios familiares ditos "de subsistência" são necessariamente moradias de safristas.
E aqui se esbarra em outra superstição: a fantasia de que não existe agricultura "patronal". Chega a ser engraçado, pois é óbvio ululante que a estrutura sindical tem uma história construída justamente sobre a dicotomia entre sindicatos de trabalhadores, que aglutinam todas as categorias de agricultores familiares com todos os gêneros de peões, e sindicatos rurais, controlados pelos donos das fazendas tocadas com mão-de-obra contratada. Repudiar a expressão agricultura patronal é tentar negar um elementar fato da realidade do setor, além de esquisito reforço ao mito de que o Brasil rural seria apanágio dos agricultores, como pretende a bancada ruralista. Nada mais falso, pois a agricultura já não é o setor predominante da economia rural do Sul-Sudeste e nunca passou de apêndice no outro extremo, a região Norte.
Como explicar, então, que exista tanta quimera sobre um único tema? Haverá outro assunto em que o simples uso de algumas expressões revele tanto preconceito? Só pode ser ideologia no pior sentido da palavra. Naquele dado por Bobbio à "falsa consciência". Uma ideologia que sempre se opôs, e sempre se oporá, à conquista de mais oportunidades de acesso à propriedade da terra pelo chamado "andar de baixo". No passado foi vigorosa no Parlamento graças a notáveis aristocratas, como o célebre senador Vergueiro. Deixou, contudo, tão vulgares herdeiros que nem vale a pena lembrar os nomes. Formam a "aliança do atraso", como diz José de Souza Martins.
O leitor certamente também identificará a influência dessa ideologia nas ferozes diatribes lançadas na imprensa contra o "Plano Rossetto", resultado de uma redução de 60% das metas (e também das páginas) da "Proposta Sampaio". Duvidoso nesse plano é se haverá orçamento e capacidade operacional para franquear acesso à terra a cerca de 400 mil famílias até 2006. A experiência anterior mostra que -com dinheiro e empenho- o Incra consegue assentar umas 100 mil famílias por ano. E sem garantir qualidade, é bom que se diga, pois isso depende de inúmeras outras variáveis locais, que extrapolam as atribuições e competências do órgão fundiário.
Todavia são obstáculos superáveis se Lula quiser mesmo dar resposta ao clamor de seus companheiros acossados por inexorável desemprego engendrado pela modernização das colheitas. Nada se compara a uma boa política de assentamentos se o critério for o combate à pobreza rural por criação de novas oportunidades de ocupação e de geração de renda.


José Eli da Veiga, 55, professor titular da FEA-USP, é autor de capítulos em três livros de 2003: "Meio Ambiente no Século 21" (Sextante), "Economia do Meio Ambiente" (Campus) e "Patrimônio Ambiental Brasileiro" (Edusp).

Internet: www.econ.fea.usp.br/zeeli/

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Antonio Barros de Castro não é publicada.


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