São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004

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ALGODÃO

Produtores brasileiros custearam despesa com o processo que contestou os subsídios dados pelo governo americano

Rifa financia vitória do Brasil contra EUA

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM BRUXELAS

O Brasil ganhou uma disputa fundamental com os Estados Unidos em torno dos subsídios ao algodão em grande medida graças a uma rifa dos produtores para custear as despesas com o processo, tocado, ironicamente, com a ajuda de dois especialistas do país derrotado.
A rifa revela como o setor privado, em especial o agronegócio, está se envolvendo crescentemente em complicadas gestões internacionais que, exatamente pela complexidade, podem sair caras demais para os cofres públicos, cronicamente depauperados.
Revela também que o Brasil tem carência de especialistas na área, não em qualidade, mas em quantidade. Roberto Azevedo, o responsável por contenciosos no Itamaraty, é reconhecido na Organização Mundial do Comércio (OMC) como um especialista de "classe mundial". Mas o número de casos está crescendo e são necessários mais especialistas.
Por isso, o governo brasileiro contratou o advogado Scott Andersen e o economista Daniel Summer, ex-funcionário do governo norte-americano e hoje professor da Universidade da Califórnia em Davis.
Segundo a Folha ouviu de funcionários da própria OMC, os estudos e testemunhos orais de Summer foram importantíssimos para comprovar as posições do Brasil. E foi Andersen quem escreveu quase todas as peças de apresentação do caso.

Reeleição sob risco
O resultado desse empenho foi uma vitória de tão tremendo impacto que a mídia norte-americana chegou ontem a especular com a hipótese de que, por causa dela, o presidente George W. Bush poderá perder a reeleição.
A lógica do raciocínio é a seguinte: a campanha Bush conta com financiamento dos produtores norte-americanos de algodão, que, irritados, poderão fechar seus cofres.
Seria até lógico: graças aos subsídios agora vetados pela OMC, 25 mil plantadores dos Estados Unidos conseguiram dominar 40% do mercado mundial.
Mas é uma lógica precipitada: o que se conheceu segunda-feira foi apenas o relatório preliminar. O final sairá no dia 18 de junho. Não deve mudar muita coisa, mas o governo norte-americano já anunciou que vai apelar. Se de fato o fizer, o processo todo poderá ficar definitivamente concluído dentro de apenas 18 ou 24 meses, bem depois, portanto, da eleição de novembro nos EUA.
De todo modo, a decisão, ainda que preliminar, já está tendo importantes efeitos.
Primeiro deles, fortaleceu o ânimo dos países em desenvolvimento produtores agrícolas de atacar legalmente outros subsídios (e subsídios não faltam no mundo rico, a ponto de somarem cerca de US$ 300 bilhões por ano).

Açúcar pode ser o próximo
Já está em andamento, aliás, outro processo, também movido pelo Brasil (e Austrália) contra os subsídios ao açúcar concedido pela União Européia.
O embaixador da Argentina na OMC, Alfredo Chiaradia, já antecipou que seu país pode entrar com uma reclamação similar na área de lácteos.
Na edição de ontem, o jornal norte-americano "The New York Times" citava fontes comerciais não especificadas para as quais "muitos produtos dos EUA e da União Européia, incluindo soja, trigo e arroz, assim como carne e lácteos, podem ser alvo de ataques na OMC".
É óbvio que a decisão, como a Folha já havia mostrado ontem, terá igualmente impacto sobre as negociações da chamada Rodada Doha, lançada em 2001 na capital do Qatar, mas paralisada desde então principalmente por divergências entre países ricos e países em desenvolvimento sobre subsídios agrícolas.
Menos óbvio é o tipo de impacto. É possível que o Congresso norte-americano, em que sempre houve desconfianças sobre o fato de a OMC poder adotar regras que contradizem a legislação norte-americana, fique ainda mais desconfiado e isolacionista.
Pode, no entanto, ocorrer o contrário, se prevalecer a pragmática visão exposta ao "NYT" de ontem por um ex-subsecretário de Agricultura, Dale Hathaway.
"Se formos forçados a retirar esses subsídios de qualquer forma, é melhor fazer os outros adotarem idêntica posição [nas negociações da Rodada Doha]", disse Hathaway.


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