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OPINIÃO ECONÔMICA
A regra do jogo
RUBENS RICUPERO
No tempo em que eu me ocupava do Gatt, o representante americano gostava de contar aos recém-chegados a seguinte anedota
pseudo-bíblica que resume bem o
cinismo (ou "realismo") com que
as grandes potências encaram as
regras do comércio mundial. Reza a história que, quando Moisés
desceu do monte Sinai, leu à multidão reunida as novas regras do
insuperável código de conduta
humana que é o decálogo. Sucede
que, extraviados em meio ao povo, andavam alguns negociadores comerciais, que imediatamente exclamaram: "Muito bem, tudo isso soa sublime. Mas onde é
que está a cláusula de exceção?".
Também conhecida como cláusula de escape, a exceção à regra
geral é o "pulo do gato", que determina muitas vezes quem vai
ganhar o jogo. Veja-se, por exemplo, o problema dos financiamentos do Proex aos aviões da Embraer. Destinam-se, em tese, a
equalizar os custos e as condições
dos empréstimos feitos no Brasil
com os vigorantes no exterior.
Nada mais legítimo, já que se
busca nivelar o gramado em que
se trava o futebol (ou vale-tudo)
da concorrência. Pode até ser que
o programa brasileiro contenha
um ou outro excesso. No fundo,
porém, trata-se de algo infinitamente mais inocente do que os
subsídios que europeus (e americanos) utilizam para inundar os
mercados com seus produtos agrícolas. Estes, no entanto, são perfeitamente legais pelas normas da
Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto os nossos
foram fulminados por painel da
mesma entidade.
Por que a diferença de tratamento? Não é certamente por serem as nossas subvenções mais
graves nos seus efeitos distorcivos
do comércio que as européias,
equivalentes, em casos extremos,
a três ou quatro vezes o custo de
produção (como ocorreu com a
expulsão do Brasil do mercado
nigeriano, anos atrás, pelo açúcar
europeu, produzido a custo de
US$ 0,21 a libra, mas vendido a
US$ 4!). A razão é simplesmente
que as regras do Gatt foram sempre formuladas pelos poderosos,
basicamente os Estados Unidos e
a Europa e, em menor grau, o Japão e o Canadá. Estes últimos decidiram que as duas grandes
áreas do comércio que ficariam
de fora da disciplina do sistema,
isto é, que constituiriam exceções
à regra, seriam a agricultura e os
tecidos e confecções. Não por acaso, eram as áreas em que os ricos
se revelavam menos competitivos,
sofriam pressões protecionistas
internas ou tinham ambos os problemas.
A mesma história se repete com
os subsídios. Os que permitem à
França exportar US$ 50 bilhões
anuais em produtos agrícolas,
mais do dobro do que o Brasil
(US$ 22 bilhões-US$ 23 bilhões),
ou que fazem da minúscula Bélgica-Luxemburgo maior exportador agrícola que a Argentina são
permitidos. Já os créditos de impostos que usamos nos anos 70
para vender manufaturados estão terminantemente proibidos.
Até na área industrial, os únicos
subsídios de luz verde, isto é, que
se podem usar à vontade, são os
utilizados quase exclusivamente
pelos ricos: para pesquisa e desenvolvimento tecnológico, para melhorar o meio ambiente e os de
desenvolvimento regional da
União Européia.
Tudo isso dura há muito tempo.
O primeiro "waiver" -quer dizer, exceção- em agricultura foi
concedido aos EUA no início dos
50 e o primeiro para tecidos de algodão, origem do regime discriminatório do Acordo de Multifibras, data dos fins da mesma década. Ou seja, num caso, quase 50
anos, no outro, 45. A fim de se
adaptarem às complexas mudanças em propriedade intelectual, os
países em desenvolvimento tiveram apenas períodos de transição
de dez anos; em alguns casos, menos. Pois bem, muitos foram pressionados ou obrigados a abrir
mão desses períodos pelas mesmas potências que, após meio século, declaram não estar prontas
ainda para liberalizar os setores
agrícola e têxtil...
Devido a esses desequilíbrios estruturais que pervertem o sistema
mundial de comércio e o tornam
pouco propício às nações em desenvolvimento, é difícil ter muito
otimismo em relação às negociações comerciais que começam
agora. No caso do Brasil, cuja
pauta de exportação praticamente não mudou em 20 anos e continua dependente de bens intermediários de pouco dinamismo no
comércio mundial, as perspectivas não são alentadoras. As
maiores barreiras às nossas exportações se concentram, de fato,
nas áreas que formam o núcleo
duro do protecionismo: antidumping contra o aço, calçados, tarifas proibitivas sobre o suco de laranja nos EUA, subsídios à exportação agrícola e escalada tarifária em alimentos processados na
Europa.
Por essa razão, creio que as autoridades brasileiras deveriam
dar mostras de sóbrio realismo e
dizer claramente à opinião pública que são modestas as possibilidades de avanços significativos
em tais setores. O pessimismo em
admitir um quadro sombrio não
precisa servir de álibi à passividade e à resignação. Deve-se, ao
contrário, negociar com posições
bem estruturadas, mas duras e
determinadas. Em outras palavras: se, no final, as conquistas
quantificáveis se revelarem insignificantes em comparação com as
barreiras competentemente inventariadas por nossas embaixadas, é imperioso recusar qualquer
abertura adicional de nossa parte. Afinal temos mercado de algum porte, cobiçado pelos estrangeiros, e somos dos poucos com
tamanho para dizer não. É a única maneira de evitar que nos imponham de novo um jogo com regras e cartas marcadas que já perdemos antes de começar.
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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