São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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OPINIÃO ECONÔMICA
A regra do jogo

RUBENS RICUPERO

No tempo em que eu me ocupava do Gatt, o representante americano gostava de contar aos recém-chegados a seguinte anedota pseudo-bíblica que resume bem o cinismo (ou "realismo") com que as grandes potências encaram as regras do comércio mundial. Reza a história que, quando Moisés desceu do monte Sinai, leu à multidão reunida as novas regras do insuperável código de conduta humana que é o decálogo. Sucede que, extraviados em meio ao povo, andavam alguns negociadores comerciais, que imediatamente exclamaram: "Muito bem, tudo isso soa sublime. Mas onde é que está a cláusula de exceção?".
Também conhecida como cláusula de escape, a exceção à regra geral é o "pulo do gato", que determina muitas vezes quem vai ganhar o jogo. Veja-se, por exemplo, o problema dos financiamentos do Proex aos aviões da Embraer. Destinam-se, em tese, a equalizar os custos e as condições dos empréstimos feitos no Brasil com os vigorantes no exterior. Nada mais legítimo, já que se busca nivelar o gramado em que se trava o futebol (ou vale-tudo) da concorrência. Pode até ser que o programa brasileiro contenha um ou outro excesso. No fundo, porém, trata-se de algo infinitamente mais inocente do que os subsídios que europeus (e americanos) utilizam para inundar os mercados com seus produtos agrícolas. Estes, no entanto, são perfeitamente legais pelas normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto os nossos foram fulminados por painel da mesma entidade.
Por que a diferença de tratamento? Não é certamente por serem as nossas subvenções mais graves nos seus efeitos distorcivos do comércio que as européias, equivalentes, em casos extremos, a três ou quatro vezes o custo de produção (como ocorreu com a expulsão do Brasil do mercado nigeriano, anos atrás, pelo açúcar europeu, produzido a custo de US$ 0,21 a libra, mas vendido a US$ 4!). A razão é simplesmente que as regras do Gatt foram sempre formuladas pelos poderosos, basicamente os Estados Unidos e a Europa e, em menor grau, o Japão e o Canadá. Estes últimos decidiram que as duas grandes áreas do comércio que ficariam de fora da disciplina do sistema, isto é, que constituiriam exceções à regra, seriam a agricultura e os tecidos e confecções. Não por acaso, eram as áreas em que os ricos se revelavam menos competitivos, sofriam pressões protecionistas internas ou tinham ambos os problemas.
A mesma história se repete com os subsídios. Os que permitem à França exportar US$ 50 bilhões anuais em produtos agrícolas, mais do dobro do que o Brasil (US$ 22 bilhões-US$ 23 bilhões), ou que fazem da minúscula Bélgica-Luxemburgo maior exportador agrícola que a Argentina são permitidos. Já os créditos de impostos que usamos nos anos 70 para vender manufaturados estão terminantemente proibidos. Até na área industrial, os únicos subsídios de luz verde, isto é, que se podem usar à vontade, são os utilizados quase exclusivamente pelos ricos: para pesquisa e desenvolvimento tecnológico, para melhorar o meio ambiente e os de desenvolvimento regional da União Européia.
Tudo isso dura há muito tempo. O primeiro "waiver" -quer dizer, exceção- em agricultura foi concedido aos EUA no início dos 50 e o primeiro para tecidos de algodão, origem do regime discriminatório do Acordo de Multifibras, data dos fins da mesma década. Ou seja, num caso, quase 50 anos, no outro, 45. A fim de se adaptarem às complexas mudanças em propriedade intelectual, os países em desenvolvimento tiveram apenas períodos de transição de dez anos; em alguns casos, menos. Pois bem, muitos foram pressionados ou obrigados a abrir mão desses períodos pelas mesmas potências que, após meio século, declaram não estar prontas ainda para liberalizar os setores agrícola e têxtil...
Devido a esses desequilíbrios estruturais que pervertem o sistema mundial de comércio e o tornam pouco propício às nações em desenvolvimento, é difícil ter muito otimismo em relação às negociações comerciais que começam agora. No caso do Brasil, cuja pauta de exportação praticamente não mudou em 20 anos e continua dependente de bens intermediários de pouco dinamismo no comércio mundial, as perspectivas não são alentadoras. As maiores barreiras às nossas exportações se concentram, de fato, nas áreas que formam o núcleo duro do protecionismo: antidumping contra o aço, calçados, tarifas proibitivas sobre o suco de laranja nos EUA, subsídios à exportação agrícola e escalada tarifária em alimentos processados na Europa.
Por essa razão, creio que as autoridades brasileiras deveriam dar mostras de sóbrio realismo e dizer claramente à opinião pública que são modestas as possibilidades de avanços significativos em tais setores. O pessimismo em admitir um quadro sombrio não precisa servir de álibi à passividade e à resignação. Deve-se, ao contrário, negociar com posições bem estruturadas, mas duras e determinadas. Em outras palavras: se, no final, as conquistas quantificáveis se revelarem insignificantes em comparação com as barreiras competentemente inventariadas por nossas embaixadas, é imperioso recusar qualquer abertura adicional de nossa parte. Afinal temos mercado de algum porte, cobiçado pelos estrangeiros, e somos dos poucos com tamanho para dizer não. É a única maneira de evitar que nos imponham de novo um jogo com regras e cartas marcadas que já perdemos antes de começar.


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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