São Paulo, quinta, 29 de janeiro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Um hospício em autogestão

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Algumas pessoas afirmam que são meus leitores frequentes ou até constantes. Vocês mal imaginam a importância que isso tem para um redator de modestos artigos semanais. Nessas ocasiões, a vaidade autoral dá arrancos triunfais de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues.
Bem. É sobretudo a esses leitores assíduos que me dirijo hoje.
Não sei se vocês dão conta de como é difícil a comunicação entre um colunista e seus leitores, mesmo fiéis. As reações aos artigos da semana passada e retrasada confirmaram essa minha convicção já antiga. Por exemplo, um leitor, Aldo Portolano, observa que a aceleração das minidesvalorizações cambiais (defendida nesta coluna na quinta-feira retrasada) não vai resolver nossos problemas externos. Não podemos mais viver tapando buracos, diz ele.
Por outro lado, muitos leitores clamam por "propostas alternativas" de política econômica e insistem que os críticos da política econômica devem especificar as medidas que consideram necessárias.
Estão todos com a razão. Mas vejam o drama. Uma discussão programática nunca é simples, particularmente quando se trata de ir além do exame de medidas tópicas ou de ajustes pontuais. Ela tem certos pressupostos, que os homens práticos (ou falsamente práticos) nem sempre se dispõem a considerar.
Se se trata de discutir uma reorientação global da agenda nacional e da estratégia macroeconômica e de inserção internacional do país -e é disso que se trata- é preciso, por exemplo, ter um bom diagnóstico da natureza dessa agenda e dessa estratégia. É preciso, também, formar uma avaliação clara do quadro mundial. Em meio ao ruído e à desinformação propagados pelos meios de comunicação, não é fácil, nada fácil, assegurar esses pressupostos.
Por falta de espaço, vou tratar só da questão internacional. No último artigo, posso ter passado uma impressão errada. Não há por enquanto "crash global", mas daí não segue que as dificuldades recentes de diversos países, inclusive as do Brasil, não tenham uma dimensão internacional de crucial importância.
A instabilidade financeira internacional, que se manifestou de forma mais aguda desde fins do ano passado, não se reduz aos erros e desmandos dos países mais atingidos no leste da Ásia e em outras regiões. Há um componente que transcende e envolve as trajetórias das diferentes economias e políticas econômicas nacionais.
Refiro-me à fenomenal expansão dos fluxos financeiros nas décadas recentes. É no terreno financeiro que as transações internacionais vêm apresentando expansão mais acentuada. Desde os anos 70, a remoção de controles sobre os movimentos internacionais de capital e a desregulamentação dos mercados financeiros domésticos, combinadas com o rápido progresso tecnológico em computação e comunicações e com a sofisticação crescente dos instrumentos financeiros, produziram ampliação extraordinária dos mercados, especialmente dos fluxos internacionais.
Nos anos 90, esses fluxos alcançaram dimensões espantosas. Grande parte da periferia latino-americana foi reabsorvida pelo processo de expansão financeira e incorporada às fileiras dos promissores "mercados emergentes".
O problema é que, em tempos de vacas gordas, essa expansão desmedida e descontrolada dos movimentos internacionais de capitais, grande parte dos quais de curto prazo ou voláteis, estimula comportamentos imprudentes. Dá sobrevida a políticas econômicas problemáticas: agradáveis no início, mas insustentáveis a longo prazo. À medida que passa o tempo, os problemas e passivos externos se avolumam. A correção dos problemas vai se tornando mais difícil e mais dolorosa.
Um agravante está no fato de que os mercados financeiros tendem a se mover em ondas. Prevalecem frequentemente a desinformação e os modismos. Ou a influência temporária da expansão da liquidez e de taxas de juro moderadas nas economias centrais.
O interesse exagerado pelos "mercados emergentes" nos anos 90 é um exemplo recente disso. Enquanto a moda durou, a manada de investidores e especuladores comprava com entusiasmo papéis desses países ou de empresas desses países. O entusiasmo gerava valorização dos ativos em questão e novas ondas de compras e de entusiasmo.
A ganância e a perspectiva de lucros rápidos são as molas propulsoras dos processos especulativos. A coisa toda assume, não raro, a aparência de um hospício em autogestão. Infelizmente, acaba chegando um momento em que o sentimento dos mercados muda abruptamente. O movimento da manada financeira muda de direção de repente, causando estragos fenomenais nas economias mais endividadas da periferia do sistema internacional.
É o que está acontecendo agora. Estamos vivendo os estertores de um boom especulativo em escala internacional. A não ser pela escala e velocidade dos fluxos de capital, não há grande novidade no fenômeno. A América Latina já viveu processos semelhantes, mais ou menos sincronizados, várias vezes desde o século passado.
Se isso tudo é tão velho, pelo menos em suas linhas gerais, por que é que os países se metem recorrentemente nessas frias? Eis aí uma questão interessante. Ao contrário do que às vezes sugere a polêmica conjuntural, a origem do problema não está apenas e nem principalmente em "erros" de avaliação de tecnocratas entreguistas, ignorantes ou deslumbrados, encastelados na Fazenda e no Banco Central.
Mais importante é lembrar que há muita gente de peso, dentro e fora dos países, que ganha dinheiro, muito dinheiro, nas fases favoráveis dos ciclos de endividamento externo. E, quando ocorre a reversão desses ciclos, os interesses financeiros externos e internos conseguem, em geral, socializar os prejuízos e os custos das crises cambiais e financeiras.
Enquanto países como o Brasil não encontrarem uma forma de se livrar do jugo dessa aliança entre tecnocracias apátridas e grupos financeiros sem escrúpulos, não haverá condições de realizar as aspirações de desenvolvimento econômico e social da maioria da população.


Paulo Nogueira Batista Jr., 42, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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