UOL


São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Um caso de consciência

RUBENS RICUPERO

"O comércio de negros e suas consequências naturais podem com razão ser estimados como inexaurível fonte de riqueza e poder naval para esta nação (...) o primeiro princípio e fundamento de todo o resto, a mola principal da máquina que põe em marcha todas as engrenagens." Quem escrevia essa monstruosidade era o respeitado comerciante da praça de Londres Malachy Postlethwayt, membro da Royal African Company. Corria o ano de 1745, nos primórdios da Revolução Industrial, e o pior é que, de um ponto de vista estritamente econômico, ele não deixava de ter alguma razão. Com efeito, muita gente ganhou dinheiro com o que um historiador americano chamou de "economia da mortalidade" e esses recursos ajudaram a financiar o início do capitalismo moderno.
Uma das manchas mais tenebrosas da história do cristianismo é que, durante cerca de quatro séculos, nações católicas ou protestantes consideravam com perfeita e igual naturalidade a captura e a compra e venda de seres humanos. Essa insensibilidade, que já não logramos conceber, deveria alertar-nos para a aberração de tratar a economia ou o comércio como atividades neutras em matéria de valores morais, obedecendo apenas a critérios de lucratividade. Para quem pensa que isso é coisa do passado, temos debaixo do nariz um outro exemplo de comércio iníquo de que novamente são vítimas os povos africanos, o que chamei em artigo no ano passado de "o escândalo mundial do algodão".
Para cerca de 11 milhões de pessoas em vários países da África ocidental, o algodão é a condição de sobrevivência. Produzido sem irrigação, com poucos fertilizantes ou outros insumos e utilizando mão-de-obra barata, a produção é de baixo custo e 90% é exportada. É dos raros produtos em que os africanos são competitivos e conseguem enfrentar a concorrência. Ou melhor, conseguiam, porque estão sendo liquidados pela mais injusta das competições, a dos subsídios. Os países que mais subvencionam o algodão são os EUA, a União Européia (Grécia, Espanha) e a China, em grau bem menor.
De longe, os piores culpados da crise que assola essa cultura são os americanos. Não só pelo volume espantoso das subvenções, que oscilam de US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões por ano, mas também porque mais de 40% da colheita é exportada.
Os Estados Unidos são os primeiros exportadores de algodão do mundo (o maior produtor é a China). Graças ao dinheiro derramado a rodo no bolso dos fazendeiros pelo Tesouro de Washington, os americanos vêm avançando vorazmente nas fatias de mercado antes dominadas por produtores como os africanos. Mesmo na fase em que o produto entrou em colapso, batendo, em maio de 2002, no fundo do poço das mais baixas cotações históricas -US$ 0,38 por libra-, os EUA lograram fazer crescer suas exportações de modo dramático. Já naquela época, os produtores ianques recebiam de subsídios mais de US$ 0,60 a libra, o que pode chegar a US$ 0,69, como resultado da nova lei agrícola, votada em 2002.
A consequência é que a África como um todo sofreu perdas de US$ 300 milhões, cabendo US$ 191 milhões à África ocidental. Para Burkina Fasso, isso equivale a 1% do PIB e 12% das exportações. Esse país perdeu mais com o colapso do preço do que o recebido do FMI e do Banco Mundial na iniciativa de alívio da dívida para os países mais pobres. Os prejuízos para Mali e Benin foram superiores ao que essas nações "ganharam" em ajuda dos EUA. Em Benin, país ligado ao Brasil por fortíssimos laços históricos, as baixas cotações do algodão foram responsabilizadas por aumento de 4% na incidência da pobreza, isto é, mais 250 mil pessoas foram atiradas na miséria.
O algodão não só responde por um terço das exportações de muitas nações africanas mas é a única cultura que permite a industrialização dessas economias, para a produção de azeite, sabão, tecidos, vestuário. Milhões de indivíduos dependentes da cadeia produtiva, além dos agricultores, assistem, assim, indefesos à destruição de seus empregos e salários pelos subsídios. Todos esses países -Burkina Fasso, Mali, Benin, Chade, Senegal- pertencem à categoria que a ONU chama de "LDC", ou "Least Developed Countries" ("Países Menos Desenvolvidos"), os pobres entre os pobres, os que vivem com menos de US$ 1 por dia. É preciso ser tão miserável para ingressar no grupo que, das três Américas, só o Haiti faz parte da categoria. São 49 nações, das quais 33 na África, e é a Unctad, a organização na qual trabalho, que se ocupa deles. Para ter idéia de como são pobres esses países, basta dizer que as subvenções americanas ao algodão são maiores do que a renda nacional do Mali ou de Burkina.
Contra esses milhões de seres humanos condenados à armadilha da pobreza, temos 25 mil fazendeiros protegidos pelo National Cotton Council, o mais eficiente dos lobbies agrícolas.
Os barões do algodão, sobretudo do Estado do Texas, recebem mais per capita e por acre que qualquer outro grupo de produtores (US$ 230, comparados a US$ 40-50 para os cereais). Os 10% mais ricos abocanham três quartos das subvenções.
Por esses motivos, os países africanos prejudicados solicitaram ao presidente de Burkina Fasso que viesse à OMC (Organização Mundial do Comércio) exigir que, na próxima reunião ministerial do órgão, em Cancún, em setembro próximo, se tome decisão para acelerar a eliminação dos subsídios e conceder aos africanos uma compensação financeira imediata, custeada pelos subsidiadores. Razão têm os africanos de sobra. Saber se serão atendidos é outra história.
História, aliás, que lembra a da Bíblia, Samuel 2, cap. 12, 1 a 15. Ela deve ser muito conhecida dos fazendeiros do sul dos EUA, da região do "Bible Belt", assim chamada porque nela todos são grandes leitores da Bíblia. Narra-se no capítulo que, depois de haver cedido à paixão por Betsabá e feito perecer pela espada a Urias, seu marido, Davi recebeu o profeta Natan. Este lhe contou que havia numa cidade dois homens, um rico em rebanhos de ovelhas e bois, outro, pobre, que só tinha uma ovelhinha, a qual amava como uma filha, pois comia de suas mãos e dormia em seu regaço. Tendo chegado um hóspede, o rico e poderoso matou a ovelhinha do pobre a fim de servi-la em banquete ao visitante. Indignado, Davi exclamou que o vilão merecia a morte e deveria pagar o quádruplo pelo que fez. Ao dar-se conta de que o vilão era ele, Davi fez penitência, e o Senhor, lento na cólera e rico em misericórdia, perdoou-o, mas o menino nascido do adultério não sobreviveu. Quem quiser extraia dessa história a moral que se aplica ao caso.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Internacional: Reforma da política agrícola e mistificação eurocrática
Próximo Texto: Lições contemporâneas: Além da Alca
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.