São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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LUÍS NASSIF

O piano do cine Odeon

Nos anos 70, o filme "Golpe de Mestre", com Robert Redford e Paul Newman, bateu recordes de bilheteria e, provavelmente, de trilha sonora. Pela primeira vez minha geração foi apresentada à música de Scott Joplin, o compositor de ragtimes nascido em 1868 e morto em 1917.
O disco explodiu no Brasil, em parte pela beleza das composições, em parte porque Joplin parecia alma gêmea de Ernesto Nazareth, o extraordinário compositor de "Odeon". Nazareth nasceu três anos antes de Joplin, no morro do Nheco, no Rio de Janeiro, filho de um funcionário da alfândega. Morreu em 4 de fevereiro de 1934, próximo à Cachoeira dos Ciganos.
Raphael Rabello, o grande violonista, era meio místico e tinha por hábito dividir o mundo em universos paralelos: o Brasil tinha Villa-Lobos, a Argentina tinha Ginastera; o Brasil tinha Tom Jobim, a Argentina tinha Piazzolla; o Brasil tinha Nazareth, os Estados Unidos tinham Scott Joplin.
Sempre lamentei a falta de tempo para poder investigar um pouco o paralelo entre ambas as músicas. Quem começou antes, o ragtime de Joplin ou os tangos brasileiros de Nazareth? Entre eles havia uma provável ponte feita por Louis Moreau Gottschalk, o genial compositor norte-americano que saiu de Nova Orleans, passou por Cuba, aportou no Brasil, compôs o clássico "A Grande Marcha Triunfal" sobre o Hino Nacional do Brasil.
Gottschalk nasceu em 1829, em Nova Orleans, cidade de Scott Joplin; morreu em 1869, no Rio de Janeiro, cidade de Nazareth. Anos atrás ouvi um CD com composições suas. Estavam ali todos os elementos do que viria a ser o ragtime de Joplin e o tango brasileiro de Nazareth.
Mas Nazareth era mais que isso. Em sua obra conviviam o choro, o batuque, a polca e as mais belas valsas que o Brasil já conheceu, inspiradas em Frederic Chopin.
Nos primeiros anos do século 20, aliás, a música popular brasileira já se sofisticara bastante. Clássicos do novo sincopado, "Tico Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu, e "1 x 0", de Pixinguinha, foram compostos antes de 1920. Nesse período, Nazareth reinava absoluto na música instrumental, com seu piano sendo admirado por Darius Milhaud, o grande compositor francês que servia na embaixada da França.
Em 1924, foi tocar no cine Odeon. Na orquestra do maestro Andreozzi, tocava o violoncelo de Heitor Villa-Lobos.
Sempre houve certo preconceito do mundo do piano erudito em relação a Nazareth. Consideravam-no popular demais, apesar da sofisticação de suas músicas. No mundo da música popular, sempre foi amado. Uma letra de Vinicius de Moraes para o choro "Odeon", de Nazareth, já encantara minha geração na voz de Nara Leão. Na história do choro brasileiro, o único autor que se rivaliza com ele na quantidade, na qualidade e na influência foi Pixinguinha.
Lá por volta de 1970, já reconhecido internacionalmente como um dos grandes intérpretes de Chopin, Arthur Moreira Lima gravou dois LPs históricos com obras de Nazareth. Foi um divisor de águas na avaliação sobre o mestre. Os LPs circularam em todos os ambientes. Foi a partir deles que tirei no meu bandolim o "Tenebroso".
Apenas alguns anos depois, meu amigo Marchezan, velho funcionário da Cesp e freqüentador do bar do Alemão, apresentou-me as gravações de Nazareth por Radamés e Aída Gnatalli. Não pode faltar em nenhuma discoteca que se preze.
Da nova geração de pesquisadores cibernéticos, o brasiliense Alexandre Dias já conseguiu perto de 1.500 gravações de músicas de Nazareth pelos mais variados intérpretes do mundo inteiro. Contabilizou 250 composições do mestre, dos quais 30% permanecem inéditas. Enviou-me um arquivo Encore da polca "Gentes, o Imposto Pegou", que Nazareth compôs aos 17 anos e que permanece inédita. Se o dr. Henrique Meirelles não tomar muito meu tempo, vou incluí-la no meu repertório, ao lado de "Brejeiro", "Ameno Rezedá", "Apanhei-te Cavaquinho", "Floraux", "Odeon", "Escorregando", "Coração que Sente", entre tantas que ajudaram no século 20 a moldar a alma brasileira.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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