São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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CONSUMO

Cineasta e publicitário aponta erros na propaganda com negros americanos, apesar de grupo representar o 11º PIB do mundo

Spike Lee denuncia "gueto" nos Estados Unidos

GARY SILVERMAN
DO "FINANCIAL TIMES"

Spike Lee gosta de comerciais de televisão. O diretor de comentários cáusticos sobre a sociedade americana como "Faça a Coisa Certa" e "Malcolm X" também é publicitário, afinal, presidente-executivo e acionista majoritário da Spike DDB, uma agência de publicidade integrada ao grupo Omnicom, a maior companhia de serviços de marketing do mundo.
Mas mesmo Lee tem seus limites. Ficou indignado quando a fabricante de material esportivo Nike exibiu neste ano comerciais estrelados por LeBron Jones, o adolescente-sensação do basquete americano, exibindo seu acrobático talento em uma igreja negra repleta de astros do basquete.
"O comercial de LeBron James, aquele em que ele entra na igreja e os negros voam pelo ar fazendo piruetas e enterrando bolas nas cestas estrondosamente, para mim, aquilo é um sacrilégio", afirma Lee, na sede de sua agência, na avenida Madison. "Desafio alguém a me exibir um comercial vendendo qualquer coisa em uma sinagoga ou igreja católica. O filme fazia chacota da fé dos negros norte-americanos e da igreja negra."
As observações de Lee são especialmente notáveis porque, como ele diz, "sou um homem da Nike". Dirigiu e atuou em uma série de comerciais inovadores com o astro do basquete Michael Jordan, em começo de carreira, e os filmes ajudaram a estabelecer os tênis Air Jordan como o ápice da moda street dos anos 80. Lee também é fã de James, e sua agência usou o jogador em um comercial. Mas o diretor continua a ser um crítico social, e sua reação ao filme da Nike que usa uma igreja negra como cenário oferece um vislumbre das questões envolvidas no mundo do marketing étnico, que cresce cada vez mais nos EUA. Os anunciantes vêm se concentrando nos negros, nos hispânicos e nos demais grupos minoritários dos Estados Unidos em razão de novas estatísticas que demonstram o poder aquisitivo desses grupos.
Os negros dos Estados Unidos, se considerados como um país separado, seriam a 11ª nação do mundo em termos de Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com a UniWorld, uma agência de publicidade associada ao grupo britânico de serviços de marketing WPP. Mais de um quarto dos negros norte-americanos tem renda superior a US$ 50 mil ao ano.
Além disso, os anunciantes têm em vista a oportunidade de atingir um novo grupo de consumidores que eles definem como "os urbanos", pessoas de diferentes raças que respondem às tendências emanadas das cidades. Esse grupo incluiria categorias como os profissionais urbanos acostumados a viver em regiões multirraciais e as legiões de brancos que vivem nos subúrbios mas se tornaram devotos do rap.
Dana Wade, presidente da Spike DDB, estima que cerca de três quartos de seus clientes anunciem para os "urbanos", enquanto o quarto restante se concentra nos consumidores negros.
Lee diz ter criado sua agência, que emprega 45 pessoas, no final dos anos 90, porque dirigir trabalhos com idéias alheias era causa de frustração. Sua participação na empresa é de 51%, e as demais ações estão sob o controle da DDB Worldwide, uma das agências de publicidade da Omnicom. Mas, mesmo como acionista majoritário, Lee ainda enfrenta obstáculos, gerados pelas concepções estereotipadas das grandes empresas sobre os negros.
Os trabalhos recentes da DDB incluem um comercial para a Pepsi-Cola baseado na ópera "Carmen" com a cantora Beyoncé Knowles no papel principal. Mas Lee e Wade dizem que muitos dos potenciais clientes continuam querendo retratar os negros, particularmente os homens jovens, de maneira menos lisonjeira.
Wade diz que "existe uma certa imagem dos homens negros que a maioria dos norte-americanos está disposta a aceitar, e é uma imagem de gangue, uma imagem exagerada". Lee acrescenta que "meus amigos atores muitas vezes contam, depois de testes com diretores brancos, que recebem pedidos para agir mais como negros, agir de um jeito mais street".
O resultado é que, na interpretação de Lee e Wade, os negros continuam a existir em um gueto, em termos publicitários. As empresas que vendem carros e roupas, ou comida e bebida, ou serviços financeiros, a exemplo das seguradoras, claramente querem atingir as audiências minoritárias. Mas os grupos que comercializam produtos de luxo preferem manter distância.
"Quanto mais luxuosa uma marca se torna, mais medo a organização de marketing demonstra", diz Wade. "Nós ficamos completamente de fora dos produtos de luxo. Eles querem acreditar que os negros são pobres e que todos nós temos baixo nível de educação. Graças a Deus pelo recenseamento, de certa forma, as pessoas descobriram que existe não só uma classe média negra mas uma classe média alta na comunidade negra dos EUA."
Lee diz que a popularidade da cultura negra sugere que os negros têm apelo maior nas audiências do que as empresas parecem presumir. Nesse sentido, ele deixa a impressão de que gostaria que sua agência de publicidade assumisse um tom mais universal. "Nós [os negros] é que geramos tudo de novo, na moda, na música, na uso da linguagem, mas não são somos vistos como uma presença universal e atraente para todos. Se não fôssemos atraentes para todos, porque a cultura negra seria imitada o tempo todo?"
"Muito do que temos de fazer é educar os clientes, que simplesmente não sabem. Eles têm uma visão monolítica dos negros: que todos nós nos parecemos, falamos do mesmo jeito e compartilhamos dos mesmos antecedentes sociais e econômicos", diz.


Tradução de Paulo Migliacci

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