São Paulo, sábado, 29 de agosto de 2009

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ANÁLISE

Deficit salvou o mundo de cair em crise econômica pior

Nos EUA, dívida pública preocupa a longo prazo, mas cenário não chega a ser catastrófico; problema maior é político e diz respeito à qualidade dos gastos

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Temos novas projeções orçamentárias que mostram um deficit cumulativo de US$ 9 trilhões ao longo dos próximos 10 anos. De acordo com muitos comentaristas, é um número apavorante e requer medidas drásticas que envolvem, especialmente, o cancelamento dos esforços de estímulo à economia e o abandono da proposta de reforma do sistema de saúde no país.
A verdade é mais complicada e menos assustadora. No momento, o deficit está na verdade ajudando a economia, já que salvou os Estados Unidos e outras grandes economias do mundo de uma queda ainda mais profunda. A perspectiva de longo prazo é preocupante, mas não se pode dizer catastrófica.
A única causa real de preocupação é política. Os Estados Unidos serão capazes de enfrentar suas dívidas se os políticos de ambos os partidos se provarem dispostos a demonstrar um mínimo de maturidade. Será que preciso dizer mais?
Comecemos pelos efeitos do deficit deste ano.
Existem dois motivos principais para a disparada do deficit. O primeiro é que a recessão gerou tanto queda acentuada na receita tributária quanto elevação nos gastos com seguro-desemprego e outros programas de proteção aos cidadãos. Segundo, houve pesados desembolsos no resgate às instituições financeiras. Estes são computados como parte do deficit, embora o governo esteja adquirindo ativos no processo e, no futuro, deva receber de volta ao menos uma parte do que gastou.
O que isso nos informa é que no momento é bom manter um deficit. Considerem o que teria acontecido caso o governo dos Estados Unidos e os de outras nações do mundo tivessem tentando equilibrar seus orçamentos, como fizeram no início dos anos 30. É uma ideia assustadora. Caso os governos tivessem elevado os impostos ou cortado os gastos diante da crise, caso tivessem se recusado a resgatar as instituições financeiras, poderíamos facilmente ter assistido a uma versão renovada da Grande Depressão.
Como eu afirmei, o deficit salvou o mundo.

Gastos maiores
Na verdade, seria melhor para nós que os governos se dispusessem a aumentar seus gastos ainda mais pelos próximos dois anos. A projeção oficial da Casa Branca mostra uma nação condenada a um longo purgatório, com a persistência de desemprego alto por anos. Se tudo isso se provar correto e temo que seja inevitável, deveríamos estar fazendo mais, e não menos, para sustentar a atividade da economia.
Mas e quanto a todas essas dívidas que estamos acumulando? Elas são um problema, mas é necessário manter a perspectiva. Os economistas normalmente avaliam a sustentabilidade das dívidas nacionais observando a relação entre seu valor e o PIB (Produto Interno Bruto). E embora US$ 9 trilhões sejam uma soma imensa, nós também temos uma economia imensa, o que significa que as coisas são menos assustadoras do que seria de imaginar.
Eis uma maneira de considerar: estamos diante de uma alta de cerca de 40% na relação entre a dívida e o PIB. Os juros reais sobre essas dívidas adicionais (é necessário subtrair a inflação) serão de provavelmente 1% do PIB, ou 5% da receita federal. Não parece um fardo esmagador.
É claro que isso presume que o crédito do governo dos Estados Unidos continuará a ser bom, de modo a que o país possa continuar captando recursos a taxas de juros relativamente baixas. Até agora, isso continua verdade. A despeito da perspectiva de grande deficit, o governo continua capaz de captar fundos a uma taxa de juros de menos de 3,5%, baixa sob os padrões históricos. As pessoas que fazem apostas com dinheiro real não parecem preocupadas com a solvência dos Estados Unidos.

Administrável
Os números explicam o motivo. De acordo com as projeções da Casa Branca, em 2019 a dívida federal líquida dos Estados Unidos será de cerca de 70% do PIB. Não é um bom número, mas fica em uma faixa que se provou historicamente administrável para os países avançados, mesmo aqueles que tenham governos relativamente fracos. No começo dos anos 90, a Bélgica país profundamente dividido em linhas idiomáticas, tinha dívida de 118% do PIB, enquanto a Itália, que afinal de contas é a Itália, tinha dívida líquida de 114% do PIB. Nenhum dos dois países enfrentou uma crise financeira.
Assim, será que existe algo com que devamos nos preocupar? Sim, mas os perigos são políticos e não econômicos.
Como afirmei, essas projeções para os próximos 10 anos não são tão más quanto algumas pessoas vêm dizendo. Em prazo realmente longo, porém, o governo dos Estados Unidos enfrentará grandes problemas a menos que realize algumas mudanças importantes. É preciso, especialmente, conter o crescimento dos gastos com os programas federais de saúde Medicare e Medicaid.
Isso não deveria ser difícil no contexto de uma reforma geral da saúde. Afinal, os Estados Unidos gastam muito mais com a saúde do que outros países avançados, sem apresentar resultados melhores, de modo que deveríamos ser capazes de obter melhor custo benefício em nosso sistema.
Mas isso não acontecerá, é claro, se até mesmo as mais modestas tentativas de melhorar o sistema forem objeto de esforços demagógicos de parte dos conservadores, para retratá-las como uma forma de "desligar os aparelhos da vovó".
Assim, não se incomode com o deficit deste ano; na verdade precisamos elevar a dívida federal no momento, e precisaremos continuar a fazê-lo até que a economia esteja solidamente a caminho da recuperação. E as dívidas adicionais devem ser administráveis. Se estamos enfrentando a possibilidade de um problema, não é porque a economia seja incapaz de aceitar dívidas adicionais. Em lugar disso, é a política, estúpido.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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