São Paulo, quinta, 29 de outubro de 1998

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O "pacote" e o resto do mundo

ALOYSIO BIONDI

O governo brasileiro não quis desobedecer ao FMI e ao governo Clinton. Anunciou um "pacote" apenas para tentar fechar o chamado "rombo" do Tesouro, à custa de mais recessão, desemprego e corte nos já ridículos serviços oferecidos à população.
Taxas de juros mantidas nas nuvens. Nenhuma política de crédito para as indústrias e agricultores nacionais enfrentarem as importações, que levam a imensa vantagem de serem financiadas a juros de 6% a 8% ao ano. Nenhuma taxação extra para os mais ricos. Nenhuma providência contra os capitais especulativos. Vale dizer, o país vai continuar a "torrar" dólares, empregos e impostos com as importações, as remessas, mantendo o "rombo" em dólares em proporções crescentes -e ele já está em US$ 35 bilhões a cada ano.
É esse realmente o único caminho que o governo Fernando Henrique Cardoso poderia trilhar? O que está acontecendo no resto do mundo, afinal? A "crise mundial" não deixa outras opções à sociedade brasileira? É fato que até a China já está ameaçada, como o ministro Pedro Malan fez questão de destacar, citando uma reportagem de capa da revista "The Economist", da qual exibiu um exemplar para não deixar eventuais dúvidas?
Para melhor entender os caminhos que o Brasil está trilhando e avaliar se haveria alternativas, vale a pena realmente uma olhada rápida sobre o que está acontecendo em outros cantos do planeta. Advertência: o mundo está mergulhado em uma "guerra de informação" em que os EUA e o neoliberalismo são apresentados como a "salvação" contra a "crise mundial", com análises distorcidas e até mentiras deslavadas, que apresentam "outros países" como os grandes vilões.

China, pecado
O governo chinês vem realizando "reformas capitalistas", abrindo segmentos de seu fabuloso mercado -e dando liberdade a movimentos de capitais estrangeiros. Há coisa de um mês, um mês e meio, após a crise da Rússia, adotou "retrocesso", no entender dos EUA e FMI.
Impôs controles no mercado de câmbio, porque estava havendo remessa ilegal de dólares para o exterior. E resolveu combater as importações desenfreadas, com medidas para evitar o subfaturamento e o dumping praticados por empresas estrangeiras (o sistema de controle é parecido com a "valoração aduaneira" que só agora, e em escala ridícula, o Brasil começou a implantar).
Pecado mais grave: a China anunciou que, por enquanto, não vai entrar na Organização Mundial de Comércio, para ter maior liberdade de defender seu mercado -pelo qual o interesse dos EUA é óbvio... Em resumo: apesar de suas fabulosas reservas em dólares, apesar de ter saldos positivos em sua balança comercial (e exportações superiores às importações), a China já estabeleceu políticas defensivas para proteger sua moeda e sua economia. Paralelo com o Brasil?

Japão, monstro?
Analistas alinhados com os interesses dos EUA apresentam o Japão como um dos principais responsáveis pela "crise mundial", atribuindo sua estagnação econômica aos "problemas dos bancos", que teriam um rombo de nada menos de US$ 1 trilhão... Ignorância, ou confusão proposital? Os bancos japoneses têm realmente algo como US$ 1 trilhão em créditos cujos responsáveis enfrentam dificuldades para quitá-los, por causa da própria recessão japonesa.
Mas os créditos que podem ser considerados como "perdidos" mal chegam a 10% daquele valor. Na semana passada, o primeiro banco que se candidatou ao programa de "socorro" do governo mostrou isso claramente, com US$ 13 bilhões em créditos "em atraso" e só US$ 1,2 bilhão em créditos "perdidos".

Ah, a Rússia...
O ministro Malan fez questão de lembrar que quando a crise russa explodiu, a inflação chegou a 43% "em apenas 15 dias de setembro", fazendo eco ao noticiário que sugere uma taxa inflacionária superior a 150% até o final do ano. Enganoso. Nos dias da "explosão", o dólar mais que triplicou de preço diante do rublo, houve pânico, corrida às lojas, remarcação de preços. Mas, desde então, o rublo, que havia caído do nível de 6 rublos por dólar para até mais de 20, recuou para a faixa dos 13 -e os preços passaram a subir em ritmo totalmente diferente. Ah, sim: como uma desgraça nunca vem só, a Rússia enfrenta violenta quebra de safras, por causa de La Niña. Após excelente colheita de 60 milhões de toneladas em 1997, previa-se uma queda, para 50 milhões de toneladas em 1998, devido à estiagem na época do plantio: o resultado deve ser pior ainda, porque, na época das colheitas, houve inundações.

Petróleo, guinada
Os preços do barril de petróleo caíram de US$ 18 para até US$ 10 a US$ 11, no primeiro semestre deste ano. Um desastre para grandes exportadores, como a Rússia, México e Venezuela. Com os cortes na produção combinados pelos países da Opep, os preços voltaram à faixa dos US$ 14 -fato solenemente ignorado pelos formadores de opinião. Nos próximos dias, a Opep se reúne para novos cortes na produção, buscando levar os preços de volta ao nível dos US$ 18. A recuperação da economia russa não é impossível como se diz.

Sem desemprego
Os "tigres asiáticos", que vêm "desobedecendo" o FMI, estão em franca recuperação. O ministro Malan procurou ignorar o fato, citando quedas de 8% e até 15% no PIB desses países. São dados velhos, superados. A Tailândia, onde a crise começou, acusava queda de 20% na produção industrial, em março. Em julho, a retração foi de 12%. Atenção: apesar da crise violentíssima, nem empresas nem bancos demitiram pessoal -revela o "Wall Street Journal" em edição recente.
Moral da história: a tal "crise mundial" é um belo argumento para que o FMI continue a dar ordens a alguns países.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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