São Paulo, sexta-feira, 29 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

A história e o novo governo do PT

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

A história é uma fonte riquíssima para aquele que procura refletir sobre os desafios e contradições de seu tempo. Principalmente no campo da política e da economia, o desconhecimento das lições de tempos passados é uma limitação extraordinária para qualquer analista. Um de meus exercícios prediletos é acompanhar os erros humanos que ocorrem hoje, principalmente no Brasil, pelo desconhecimento de fatos passados. Ele é estimulante do ponto de vista intelectual, principalmente porque não é simples identificar em acontecimentos, perdidos no tempo e no espaço físico de nações distantes, as semelhanças com o que ocorre no dia-a-dia de nossas vidas.
Gostaria de dividir com meu leitor da Folha duas experiências atuais desta minha leitura comparativa da história. A primeira diz respeito ao primeiro governo do presidente Miterrand na França, em 1982. Até então eterno candidato dos socialistas franceses à Presidência da Republica, ele amargava três derrotas consecutivas na corrida ao Elysée. Em 1982, em aliança com o Partido Comunista, conseguiu vencer as eleições e assumiu a Presidência da República, ao mesmo tempo em que a esquerda, mais ou menos unida, passou a controlar o Legislativo.
Eu estava em Paris no dia da posse do novo governo e pude sentir nas ruas o entusiasmo popular que a vitória da esquerda provocou. A esperança de novos tempos, com mais justiça social e uma visão política mais solidária, varreu Paris como uma espécie de onda rosa, para usar um termo de hoje no Brasil. Certamente algo parecido com o que vai se passar em Brasília no dia da posse de Lula!
Durante dois anos, acompanhei com emoção os passos do novo governo. Sem a facilidade da internet, eu era obrigado a comprar edições atrasadas do "Le Monde" na Livraria Francesa, no centro velho de São Paulo, para acompanhar as transformações sociais e econômicas que ocorriam no país de Voltaire. Foi dessa forma que vivenciei os fracassos do novo governo, principalmente na economia. Desvalorização do franco, então a moeda nacional, inflação e fuga de capitais foram as marcas daquele tempo.
Em 1985, com a crise financeira agravada e em meio a uma grande decepção popular, Miterrand foi obrigado a mudar seu ministério. Chamou para comandá-lo Michel Roccard, um político tradicional e de grande prestigio no grupo socialista. O novo primeiro-ministro mudou os rumos da política econômica e chamou um burocrata, também ligado ao PS, para o Ministério da Economia. Jacques Delors comandou com mão-de-ferro um ajuste macroeconômico ortodoxo, com a precisão de um homem de direita. Meses depois dessa incrível guinada do governo, um jornalista perguntou ao primeiro-ministro qual era a diferença que existia entre ele e um homem de direita. Roccard respondeu, com simplicidade: "Eu faço tudo isso com uma terrível dor em meu coração".
Lula, que também tem feito comentários sobre corações e cérebros de seus futuros ministros, precisa olhar para a França daquela época para não trilhar caminhos sem volta em seu governo rosa!
A segunda questão em que uma leitura histórica correta precisa ser feita é a da volta da inflação nos primeiros dias do novo governo. Também aqui devemos olhar para a primeira metade da década de 80 -1983, para ser mais preciso- e compreender a natureza do que está acontecendo agora no Brasil. A comparação desta vez é mais simples, à medida que o país que pode nos ensinar coisas importantes é o nosso próprio Brasil dos anos finais da ditadura militar. Passávamos então por uma situação de corte abrupto de nosso crédito internacional, provocado pela moratória mexicana, que levou o governo a desvalorizar nossa moeda com o objetivo de gerar um saldo comercial expressivo. Fomos obrigados, como agora, a diminuir nossas importações e a desviar parcela expressiva de nossa capacidade de produzir para o mercado externo, via exportações.
Ao choque de oferta de dólares na economia segue uma contração de oferta de produtos para o consumo dos brasileiros. Com isso, no nível de renda que prevalecia antes do choque de câmbio, passa a ocorrer uma verdadeira inflação de demanda em setores importantes.
Como precisaremos manter em 2003 essa situação de redução da oferta de produtos e serviços, a pressão sobre os preços em setores importantes deve continuar. Alguma folga virá quando a safra agrícola -vivemos agora o que se chama de entressafra- aumentar a disponibilidade de alimentos, por volta de abril. Mas a demanda apertada em mercados que não têm essa sazonalidade agrícola e que estão próximos da plena ocupação de sua capacidade produtiva -entre eles o mercado de produtos siderúrgicos e de papel- vai continuar. A única saída será provocar uma nova queda do consumo, via redução do poder aquisitivo dos brasileiros. Esse serviço sujo será feito pela própria aceleração da inflação, caso não haja uma rodada de aumentos de salários.
Vivemos uma situação aparentemente paradoxal, na qual em uma situação de alto desemprego e queda expressiva do poder de compra dos salários aparecem focos da clássica inflação de demanda -isto é, quando há mais compradores do que produtos à venda. Isso acontece nos setores de bens que são exportados ou podem ser exportados. Sugiro a meus leitores e a alguns economistas que só conhecem seus livros-textos que também olhem para esses, hoje já longínquos, anos de 1983 e 1984.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


Texto Anterior: Varejo troca nacional por produto do Mercosul
Próximo Texto: Panorâmica - Indústria: Elevação do IPI causa aumento da água mineral e do refrigerante popular
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.