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OPINIÃO ECONÔMICA
Reforma tributária: o grande blefe
MARCOS CINTRA
"A sociedade humana se baseia na enganação recíproca"
Pascal
Neste final de ano, a sociedade brasileira foi protagonista de uma grande farsa. O governo acaba de anunciar, com estardalhaço, que completou a reforma tributária. Indiretamente, induz a uma conclusão: a de que logrou realizar no seu primeiro ano
de atuação o que o governo FHC
não foi capaz de fazer em oito.
Trata-se de comparação injusta. No governo passado, Executivo e Congresso trabalharam arduamente na elaboração de vários projetos de reforma tributária. Não houve consenso, e a questão continuou na pauta de discussões. O Executivo, por convicção, não aceitou a proposta elaborada pela Câmara dos Deputados por julgá-la equivocada e
tecnicamente deficiente. Por outro lado, o Poder Legislativo não
cedeu às pressões do governo.
Contudo o impasse enriqueceu o
debate, consolidou pontos de vista e esclareceu a sociedade acerca
das dificuldades inerentes à questão.
Neste governo a discussão foi
diferente. A pressa empobreceu os
debates e, frente ao inevitável
conflito que o tema sempre suscita, a opção do governo foi a de escamotear a polêmica, fragmentar
as ações, usar de táticas diversionistas e conduzir a questão estritamente dentro dos limites de
seus interesses mais imediatos, ou
seja, manter a arrecadação da
CPMF e prorrogar a DRU, Desvinculação das Receitas da
União. Para obter os necessários
apoios políticos, jogou algumas
migalhas para governadores e
prefeitos se refestelarem.
Foi um remendo, quase totalmente possível de ter sido feito por
medidas infraconstitucionais.
Pouco, ou quase nada, foi feito
para aperfeiçoar o sistema no
sentido de corrigir algumas das
suas mais clamorosas distorções,
como a sua elevada taxa de corrupção, a crescente evasão, a escandalosa sonegação e a escorchante carga de impostos cobrada
de alguns setores menos capazes
de praticar uma ação defensiva
eficiente, como os assalariados e
os prestadores de serviços da economia formal.
Na realidade, a meia-sola tributária do governo Lula foi uma peça encenada em vários atos. A
PEC 74-A do Senado Federal, a
chamada reforma tributária, foi
certamente o ato menos importante de todos. As modificações
no sistema tributário ocorridas
em 2003 foram implementadas
por leis ordinárias, por leis complementares e até por medidas
provisórias. Enquanto a sociedade era distraída com discussões
inócuas no Câmara e no Senado,
o governo agia nos bastidores e
fez o que bem entendeu para concretizar suas pretensões.
O primeiro ato foi a vergonhosa
alteração do ISS. Os poucos aperfeiçoamentos que, eventualmente, a lei complementar 116/2003
possa ter trazido, e certamente
trouxe alguns, foram embaçados
pelo absurdo teto de 5% na alíquota daquele imposto, que passou a valer a partir de agosto último. Tal medida beneficiou principalmente um setor que menos
benesses merece, o dos bancos,
que, em geral, eram tributados
com alíquotas de 10%. Essa medida custará aos municípios brasileiros perdas anuais de mais de
R$ 500 milhões. A quem essa "reforma" interessou, os anais da
história ainda haverão de esclarecer.
O segundo ato foi encenado por
medida provisória, a MP 135, que
alterou a Cofins tornando-a uma
contribuição não-cumulativa. O
tema já foi exaustivamente analisado, e repudiado, por praticamente todos os setores. O mais
surpreendente é que a não-cumulatividade da Cofins, exigência
imposta e cobrada pelo FMI nas
discussões para a renovação do
acordo com aquele organismo internacional, atende a insistentes
reivindicações de alguns setores
empresariais que instrumentalizaram as outras representações
sindicais patronais para conseguir transferir impostos para os
segmentos que mais empregam
mão-de-obra, os prestadores de
serviços, que eram tidos, equivocadamente, como beneficiários de
uma carga tributária mais leve.
Agora que a maldade foi perpetrada, descobre-se que as perdas
foram generalizadas, que a vantagem da não-cumulatividade é
um mito e que há necessidade de
urgentes medidas corretivas.
Pateticamente, o governo
anuncia que, para atenuar os recém-descobertos males da não-cumulatividade, alguns setores de
"alto interesse social" poderão
permanecer no sistema cumulativo, que, de odiado, passa a ser objeto de desejo de todos os setores
produtivos. Educação, saúde, comunicação, informática, agronegócios, dentre outros, passarão a
ter regimes especiais, cheios de exceções e perigosos precedentes. A
burocracia se acerca das vítimas
com seu abraço de afogado e promete novas medidas corretivas
como a desoneração da folha de
salários das empresas para compensá-las por terem de viver em
um mundo não-cumulativo.
A tão elogiada não-cumulatividade tributária não passou de um
engodo a exigir compensações. E
o governo é forçado a oferecer como paliativo o que sempre considerou ser o veneno, a opção de
continuar com o sistema cumulativo. A ironia dessa situação seria
risível, se não fosse trágica em
suas danosas consequências sociais e econômicas.
A cena final foi a aprovação da
inócua PEC da reforma tributária. Na realidade, o que se aprovou de importante foi apenas a
prorrogação da CMPF e da DRU.
O resto continua a ser o que sempre foi: projetos que continuarão
a ser debatidos no Congresso Nacional, como a unificação do
ICMS (proposta de FHC que vem
de 2001), a criação do IVA (proposta frustrada da Comissão de
Reforma Tributária da legislatura passada) e a extinção da
CPMF (há dezenas de projetos de
lei nesse sentido no legislativo nacional). Como se vê, não se fez
quase nada, a não ser fazer tudo
continuar como está. De resto, joga-se muita fumaça nos olhos dos
pobres pagadores de impostos, fazendo-os acreditar que o Congresso deliberou alterar importantes pontos do sistema tributário nacional.
A reforma tributária foi um
grande blefe. O contribuinte não
perceberá qualquer modificação
para melhor em sua vida cotidiana. Na realidade, sobre os grandes temas de uma autêntica reforma, a grande deliberação do Congresso foi a de que o Congresso irá
deliberar sobre elas!
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade
Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, é secretário das Finanças
de São Bernardo do Campo e autor de "A
verdade sobre o Imposto Único" (LCTE,
2003). Escreve às segundas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
mcintra@marcoscintra.org
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