São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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ENTREVISTA

Economista diz que o Brasil pratica "samba de uma nota só" e que Banco Central está sozinho no combate à inflação

Paulo Leme apóia BC, mas nega convite

GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

O economista Paulo Leme, 49, diretor para mercados emergentes do Goldman Sachs, acha que o Banco Central está agindo sozinho dentro do governo na política de combate à inflação. "O Brasil está praticando a política do samba de uma nota só no combate à inflação", diz Leme.
Segundo o economista, a política monetária está sobrecarregada, e é por isso que o Banco Central está recorrendo ao aumento constante de juros. Todos os outros instrumentos do governo que poderiam contribuir para a queda da inflação, como a política fiscal e a política salarial, estão na direção contrária.
"A questão correta é saber se a classe política brasileira está dando ou não as condições necessárias ao Banco Central para o cumprimento da meta, e a resposta é não", afirmou Leme.
Questionado sobre a informação publicada sábado na Folha de que ele teria sido sondado pelo governo para ocupar uma diretoria do BC, Leme negou a informação. A seguir, a entrevista concedida por telefone de Miami, onde o economista mora atualmente:

Folha - O que o sr. achou da ata do Copom?
Paulo Leme -
Achei que a linguagem foi um pouco mais restritiva do que estava esperando. O recado foi muito claro. Não só a taxa de juros vai continuar subindo como vai permanecer alta por um período mais longo. Os juros vão fechar 2005 num nível mais alto do que as projeções indicavam. A atual diretoria do Banco Central tem mantido a credibilidade e segue à risca o que escreve na ata. Portanto, o mercado foi obrigado a recalibrar as expectativas dos juros para um nível mais alto.

Folha - O sr. também recalibrou a projeção para os juros?
Leme -
Sim, como todo o mercado. Eu previa o primeiro corte de 0,25 ponto nos juros em julho, e agora revi para agosto. Pelas minhas projeções anteriores à ata, os juros básicos da economia iriam encerrar o ano em 16,75%. Agora, fechei a projeção em 17,75%. Ficou claro na ata do Copom a preocupação do Banco Central com a persistência da inflação. O BC chegou a cogitar na ata um aumento maior dos juros na semana passada, mas a própria ata alegou que não existiam evidências e dados que justificassem a decisão.

Folha - O que justifica essa preocupação?
Leme -
A ata denota três grandes preocupações. A primeira, o fato de o núcleo da inflação continuar incompatível com a meta de inflação. Segundo, o ritmo de crescimento da demanda agregada não ser condizente com a queda da inflação. E, em terceiro, a rigidez das expectativas de inflação. As previsões caíram de 5,9% para apenas 5,7%. As expectativas continuam sem ceder, apesar de alguns fatores positivos, como a apreciação do câmbio e o preço do petróleo não exigirem novos aumentos de combustível. Mesmo assim, as expectativas de inflação continuam altas, o que preocupa a autoridade monetária.

Folha - O Banco Central não estaria sendo ortodoxo demais?
Leme -
Não está sendo nem ortodoxo nem duro demais. Está sendo apenas coerente em cumprir a missão de que foi encarregado, que é reduzir a inflação para a meta de 5,1% para este ano. A pergunta correta não é se o BC está sendo ortodoxo demais. A questão correta é saber se a classe política brasileira está dando ou não as condições necessárias ao BC para o cumprimento da meta. E a resposta é não.

Folha - Como assim?
Leme -
Está se sobrecarregando demais o instrumento de política monetária. A política monetária está sendo forçada a alcançar mais objetivos do que ela é capaz de atingir. Há outros instrumentos que também poderiam afetar o nível de preços, a política monetária não é o único.
Apesar de sensata e de cumprir com as metas de superávit primário, a composição da política fiscal, por exemplo, é expansiva. O grau de aumento da despesa corrente acima de 10% é incompatível com a meta de inflação. Essa política expansiva dificulta o trabalho do Banco Central de obtenção da meta de inflação. Não é a política monetária que está ortodoxa demais. Os outros instrumentos é que estão dificultando a obtenção da meta. Outro exemplo é a política salarial expansiva. Ela alimenta a demanda doméstica e o consumo privado. Aumentar o mínimo significa mais pressão sobre a inflação.

Folha - Mas a desvalorização do dólar não ajuda a conter a inflação?
Leme -
Quando se adiciona o objetivo de aumentar o estoque de reservas, especialmente em razão das incertezas para 2006 e 2007, o Banco Central acaba impedindo o processo de valorização natural do câmbio. Isso acaba prejudicando a queda da inflação pela apreciação normal do câmbio. Ou seja, se não houvesse intervenção de espécie alguma, nem no mercado de swap (futuro) nem no pronto (dólar à vista), o real iria se valorizar ainda mais.
Ao comprar dólar, o BC impede a plena apreciação do real. O fenômeno de desvalorização do dólar é global e atinge todas as moedas de países emergentes do mundo. Não é de se surpreender, por isso mesmo, que a política monetária tem de ser restritiva. Você tem três instrumentos para reduzir a inflação, a política fiscal, a política monetária e o câmbio -mas só um, a política monetária, pode atuar.
As outras políticas não estão harmonizadas com a política de combate à inflação. Há um desequilíbrio no mix de políticas do governo. São por essas razões que o instrumento monetário está sobrecarregado. O Brasil está praticando a política do samba de uma nota só no combate à inflação.

Folha - A meta de inflação não é rígida demais?
Leme -
A meta é razoável. Não há ganhos em ter uma inflação maior. Quanto mais for permissiva a política em tolerar inflações mais altas, pior será para o país. Seria a pior política social do governo Lula tolerar inflações mais altas. Por isso, a meta tem de ser ambiciosa de fato.

Folha - No caso de uma maior desvalorização do dólar, o Brasil não corre o risco de perder em competitividade no mercado externo?
Leme -
O que realmente afeta a competitividade é a taxa real efetiva do câmbio comparada a uma cesta de moedas do comércio do país. Quando se faz esse cálculo, o que se vê é que o Brasil perdeu muito pouco em competitividade. Isto porque não é só o real que está se valorizando em relação ao dólar, mas todas as outras moedas, inclusive o euro.
Além disso, apesar da recuperação recente do salário, a queda do salário real foi muito grande nos últimos anos. O custo unitário da mão de obra no Brasil é 50% mais competitiva do que era em 98. O Brasil não perdeu em competitividade quando se mede a taxa de câmbio de maneira adequada. A margem de lucro do exportador no Brasil ainda é muito grande.

Folha - Como o sr. vê o cenário externo para os próximos anos?
Leme -
Apesar das muitas incertezas, o quadro externo ainda continua muito favorável. As perspectivas ainda são muito positivas para o crescimento mundial. A demanda por matérias-primas continua elevada, há ainda uma grande liquidez internacional e muito apetite para riscos. Há riscos, mas o quadro mais provável para 2005 é que a economia internacional ainda vai propiciar um crescimento da economia brasileira próximo a 4%. O vento continua soprando a favor.
O que acho é que o governo deveria aproveitar 2005, que não é um ano eleitoral, para deslanchar as reformas estruturais. Entre elas, o projeto de autonomia do BC, a reforma da Previdência, a reforma tributária e a trabalhista. O país não pode desperdiçar mais uma vez esta oportunidade. Outra grande reforma poderia ser na área comercial. O Brasil deveria privilegiar os Estados Unidos e a Europa como parceiros comerciais, e não a chamada política Sul-Sul. Os outros parceiros são muito pequenos em relação aos Estados Unidos e à Europa. O Brasil precisa enfrentar de vez a questão da Alca.

Folha - O sr. foi sondado para ocupar uma diretoria do Banco Central?
Leme -
Nem para ministro dos Esportes. Não há o menor fundamento.

Folha - E se fosse convidado?
Leme -
Não opero sobre cenários especulativos.

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