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Meu erro foi confundir dor com felicidade
SANTIAGO LAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
"É o câncer que me faz sorrir." Respondi, para surpresa do doutor Robert Robson.
O médico esboçou um sorriso, recolheu meus exames, degustou
minhas enzimas e declarou: "Não
há motivo para alegria."
Por que não, se eu crescera na
praia? Pulsava de sol, vivia de brisa e afundava os pés na lama e na
areia. Era o sol que me fazia franzir. E o sal, para não arder. Virava
o rosto, fechava os olhos, escondia o êxtase, mas expunha pele, a
pele. A pele que me faz penar.
Com o tempo, vaidade; mais vício do que latinidade. Exercitar os
músculos faciais, criar um curinga, proteger minha tela. Sorrindo
para não despencar. Marcando o
rosto para não me esquecer. "Vaidade, doutor, vaidade. É a vaidade
que me faz franzir."
Esticando as rugas para trás das
orelhas. Mantendo o sorriso, apesar das olheiras. O câncer foi
avançando, sob minha pele cansada. Parecia mais refinado, soando em nasais. Tudo parecia,
quando eu provava mais. De Portugal para a Colômbia, minha língua, latina, morta. "Foi o sol, foram as drogas, foi essa vida toda
que me entorta." O doutor escondeu sua alegria. "Enfim, alguém
fez por merecer." Se não podia tirar o câncer da minha pele, se não
podia tirar o sol do meu sangue,
se não podia tirar uma vida de
mim, ao menos do meu rosto poderia. Poderia arrancar toda a minha alegria. "É melhor internarmos você aqui em Chicago." "Não
ria, doutor, não ria. Mas a desgraça foi a minha alegria." "A alegria
foi a minha desgraça", ele corrigiu, como se eu não dominasse
sua língua. Beijei sua mão e reafirmei, "foi só para rimar, doutor."
Ele então se aproveitou da minha saliva. E se umedeceu com
ironia. "Não ria, Sebastian, não
ria. Mas não há mais tempo para
cirurgia." Nessa vida de excessos,
não há mais tempo para nada.
Nessa vida de excessos, não há
nem mais tempo pra vida. Mas se
ele não podia tirar o câncer da minha pele, se não podia arrancar o
sol do meu sangue, se não podia
tirar uma vida de mim, ao menos
no Brasil eu poderia. Poderia me
queimar numa ilha.
"Escute aqui, não há graça nenhuma. Sua doença é grave, séria,
não é prosa nem poesia." Ele estava acostumado com lágrimas, enzimas, saliva. Mas meu sorriso automático ia muito além dos exames clínicos. Cínico. Tomava
meu rosto como zombaria.
Então pedi desculpas pela minha doença. Pedi desculpas pelas
minhas rimas. Pedi desculpas por
uma vida de excessos, mas não
me arrependo, se a recebi sem filtros ou bloqueios.
"Foi apenas força de expressão,
doutor. Foi só a expressão no meu
rosto. Não ria, doutor, não ria.
Meu erro foi confundir dor com
felicidade."
Santiago Nazarian, 27, escritor, é autor
de "A Morte Sem Nome", Editora Planeta
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