São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

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ANÁLISE

Crescimento em meio a dívidas

KENNETH ROGOFF
CARMEN REINHART
DO "FINANCIAL TIMES"

À medida que o nível de endividamento dos governos explode depois da crise financeira, cresce a incerteza quanto ao momento certo para suspender as extraordinárias medidas de estímulo fiscal em vigor hoje.
Nossas pesquisas sobre a longa história das crises financeiras sugerem que as escolhas não são fáceis, não importa o quanto desejemos acreditar na atual ilusão de normalidade que prevalece nos mercados. A menos que tudo seja diferente desta vez e -isso está longe de parecer verdade-, a crise financeira de ontem poderia facilmente se tornar a crise da dívida pública do amanhã.
Em ciclos passados, crises bancárias internacionais, muitas vezes, resultaram em ondas de moratórias nacionais poucos anos mais tarde. A dinâmica nada tem de surpreendente, porque a dívida pública tende a disparar depois de uma crise financeira, subindo em média 80% em um prazo de três anos.
A carga da dívida pública dispara devido aos resgates, às medidas de estímulo fiscal e ao colapso na arrecadação tributária. Nem todas as crises bancárias terminam em moratória, mas sempre que existe uma onda internacional de crises, como acabamos de ver, alguns governos optam por essa rota.
Não prevemos moratórias escancaradas nos maiores países atingidos pela crise, e certamente nada semelhante às dramáticas moratórias práticas dos anos 30, quando Estados Unidos e Reino Unido abandonaram o padrão ouro. As instituições monetárias são mais estáveis (presumindo que o Congresso dos Estados Unidos as mantenha assim).
Fundamentalmente, a dimensão do choque é inferior. Mas a carga de dívidas está se aproximando de patamares de cerca de 90% do PIB (Produto Interno Bruto) ou mais. Esse nível está historicamente associado a crescimento notavelmente menor.
Embora o mecanismo exato não seja claro, presumimos que os ágios nas taxas de juros reajam aos deficits descontrolados, forçando os governos a apertar sua política fiscal.
Impostos mais altos exercem impacto adverso sobre o crescimento. Suspeitamos que o crescimento também se desacelere quando o governo recorre a medidas de repressão financeira a fim de colocar títulos de dívida com taxas de juros inferiores às de mercado.
Felizmente, muitos mercados emergentes estão em melhor situação fiscal do que os países avançados, especialmente no que tange à dívida externa. Enquanto muitos dos países avançados assumiam elevações consideráveis em sua dívida externa no período que antecedeu a crise, muitos mercados emergentes tratavam de reduzir seu endividamento.
Infelizmente, não é esse o caso nos países emergentes europeus, onde a carga da dívida externa continua acima dos 100% do PIB; os níveis de dívida externa (incluindo uma vez mais a dívida pública e a privada) da Grécia e Irlanda, dois países em crise, são ainda mais altos. Será que a típica onda de moratórias pós-crise acontecerá nos próximos anos? Isso depende de diversos fatores.


Programas do FMI
Um fator de diferença é a forte expansão do FMI (Fundo Monetário Internacional) iniciada em abril do ano passado. Os programas do FMI podem mitigar os pânicos graves e ajudarão os países que realizarem esforços genuínos para fazer ajustes. Para alguns países, no entanto, as cargas de dívida se provarão intratáveis mesmo após a ajuda. E isso acabará por forçar reestruturações.
De fato, o FMI precisa garantir que sua interferência não permita que os países cavem buracos ainda mais fundos, que conduziriam a moratórias ainda mais destrutivas, como a da Argentina em 2001. Tendo imposto condições muito frouxas em resposta à crise financeira, o FMI agora enfrenta suas próprias dificuldades em termos de estratégia de saída.
O desfecho dessa situação afetará o momento das moratórias, ainda que rebaixamentos de classificação de títulos de dívida e saltos nas taxas de juros já tenham surgido.

Taxas de juros
Outra grande incógnita é a rota futura das taxas reais de juros em todo o planeta, que vinham exibindo tendência de queda há muitos anos. Quanto mais baixas forem, mais altos os níveis de dívida que os países poderão sustentar sem que sejam submetidos à disciplina do mercado.
Um erro comum é que os governos manipulem a curva de rendimentos à medida que as dívidas cresçam. Eles passam a adotar papéis mais baratos e de curto prazo a fim de economizar nos custos de juros. Infelizmente, um governo com dívidas de curto prazo muito altas estará mal posicionado para um ajuste caso os juros saltem ou a confiança do mercado comece a desabar.
Dados esses riscos de uma dívida pública mais alta, com que rapidez os governos deveriam descontinuar suas medidas de estímulo fiscal? Não é uma tarefa fácil, especialmente se levarmos em conta o nível fraco do emprego, que uma vez mais é bastante característico das crises financeiras do pós-Segunda Guerra Mundial nos países nórdicos, no Japão, na Espanha e em muitos mercados emergentes.
Dada a probabilidade de que o consumo continue fraco nos Estados Unidos e na Europa, uma retirada rápida das medidas de estímulo poderia facilmente devolver a economia à recessão. No entanto, quanto antes os políticos decidirem que é preciso aceitar o ajuste, menores os riscos de problemas de dívida verdadeiramente paralisantes no futuro.
Ainda que a maioria dos governos desfrute de forte acesso aos mercados financeiros e a taxas de juros muito baixas, a disciplina de mercado pode ser imposta sem aviso. Os países que não tiverem preparado o terreno para o ajuste se arrependerão disso.
Os mercados já estão se ajustando à regulamentação financeira que deve surgir depois da generosidade sem precedentes dos contribuintes. Em breve também terão de despertar para o tsunami fiscal consequente. Os governos que se convenceram de que fizeram as coisas muito melhor que seus predecessores deveriam ser os primeiros a despertar, porque nada é diferente desta vez.


CARMEN REINHART é professora de Economia na Universidade de Maryland, e KENNETH ROGOFF é professor de Economia na Universidade de Harvard. Os dois são coautores de "This Time is Different: Eight Centuries of Financial Folly" ("Desta Vez é Diferente: Oito Séculos de Insensatez Financeira").


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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