São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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LUÍS NASSIF
Estão voltando as flores

A primeira vez que ouvi "Estão voltando as flores" ao vivo foi em um barzinho de Santos, o Chão de Estrelas, em 1971. Antes, ouvira algumas vezes na voz potente de Helena de Lima. Miltinho, cantor ainda em voga, ia se apresentar. Antes dele, subiu ao palco um senhor, creio que se apresentou como sogro e empresário, e cantou a música: "Vê, estão voltando as flores / Vê, nesta manhã tão linda / Vê, como é bonita a vida / Vê, há esperança ainda". Confesso que fui meio inconveniente, pedindo dois bis. Afinal, o show era do Miltinho.
No final, fui perguntar da música. Tão bonita quanto ela, era sua história. O autor tinha ficado muito doente, dado como desenganado, e uma manhã o médico chegou em sua cama, no hospital, e anunciou que a doença fora vencida.
O autor era Paulo Soledade, que por duas vezes anunciei, aqui, vontade de conhecer. Por meio da extraordinária "Enciclopédia da Música Brasileira", do Publifolha -que ganhei na semana passada, depois de relacionar uma série de autores que desconhecia-, fico sabendo mais de Soledade.
Paulo Gurgel Valente do Amaral Soledade nasceu em 1919, há 80 anos, portanto, em Paranaguá, Paraná, mas desde logo tornou-se membro da escola mais galante dos cariocas honorários. Com cerca de 20 anos fez teatro com Ziembinsky. Depois, entrou na Força Aérea e ajudou a fundar o famosíssimo Clube dos Cafajestes, além de compor seu hino.
Em 1942 foi para os Estados Unidos, fez curso em aviões de caça e voltou -pasme!- como tenente da Força Aérea americana. Trocou por uma carreira de comandante na aviação civil, que abandonou sete anos depois, por problemas de saúde. Foi homem da noite, montando a famosa casa Zum Zum, que abrigou os primeiros ícones da bossa-nova no início dos anos 60.
Seu repertório é pequeno, porém estupendo. "Estão voltando as flores" é de 1961. Em 1952, com Marino Pinto, compôs "Estrela do mar", sucesso fulminante de Dalva de Oliveira ("Um pequenino grão de areia / Que era um pobre sonhador / Olhando o céu viu uma estrela / E imaginou coisas de amor"). Em 1954, com Vinícius de Morais, compôs "Poema dos olhos da amada", tão espessamente romântico que parecia até Tom Jobim daqueles anos ("Ó minha amada / Que olhos são seus / São cais noturnos / Cheios de adeus"). Em 1956 compôs "São Francisco", também com Vinícius, que viria a se popularizar no início dos anos 80. Em 1949, com Fernando Lobo, compôs "Zum Zum" ("Ô zum zum zum zum zum / Está faltando um"), em homenagem a um companheiro da Aeronáutica que morrera.
Pois o velho Soledade, que meu amigo Pelão tinha me prometido apresentar quando fôssemos ao Rio, morreu na semana passada.
Mas para os da minha geração, brasileiros de profissão esperança, até o final dos nossos dias os oito versos do "Estão voltando as flores" continuarão sendo o símbolo máximo de um povo que pode perder batalhas, mas não perde a fé: "Vê, as nuvens vão passando / Vê, um novo céu se abrindo / Vê, o sol iluminando / Por onde nós vamos indo".

Enciclopédia
A "Enciclopédia da Música Brasileira" é obra imperdível. Vão aí algumas curiosidades, em uma primeira leitura, apressada e ansiosa:
Alzirinha Camargo - A jovem cantora, que um dia tentaram rivalizar com Carmen Miranda, nasceu em 1915, no Brás, em São Paulo. Não consta data da morte. Foi em 1980, em Santos, onde terminou seus dias como enfermeira da Santa Casa. Ao enterro compareceu apenas uma amiga de juventude, Eros Volúsia. De dona Célia de Toledo Lara, de Itapetininga, recebi e-mail dando conta que Alzirinha foi para lá, formou-se e trabalhou algum tempo como professora. Foi trazida para São Paulo por Pinheirinho, bandolinista dos anos 30, irmão de Anésia Pinheiro Machado, primeira aviadora do Brasil.
Na minha infância, minha mãe cantava uma marchinha maliciosa, divertidíssima, chamada "Flauta de Bambu" ("Eu ganhei uma flauta de bambu / Dia e noite toco flauta, toco flauta pra chuchu"). Pelo tom malicioso, julgava ser de João de Barro. É do baiano Sá Roris, em parceria com o caricaturista Nássara, e foi gravada por Jararaca.
"Cajita de Musica" - Peça clássica do repertório violonístico brasileiro, foi composta aos 11 anos de idade pelo professor Isaías Sávio (1900-1977), uruguaio, amigo da família, e que foi mestre dos maiores violonistas brasileiros do século.
O embaixador Walther Moreira Salles, que foi amigo de Ary Barroso em Poços de Caldas, me disse certa vez que o compositor e pianista teve aulas de música com um pistonista negro lá da cidade mesmo.
No verbete de Aimoré (violonista paulista que fez duo com Garoto), informa-se que em 1924 ele estudou música com Tango (Sebastião Patrício), pistonista da banda de Poços de Caldas.
E-mail: lnassif@uol.com.br



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