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São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O afobado come cru, mas o atrasado perde o trem

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

A era Lula trouxe de volta à política o uso de metáforas de cunho popular. As opiniões sobre essa forma quase simplória de comunicação de nosso presidente se dividem; temos os que a defendem como forma eficiente para discutir questões de relevância com a sociedade e os que entendem que a função de presidente da República exige uma certa liturgia para seu exercício.
Esse comportamento está permeando os membros do governo, inclusive na sisuda e conservadora equipe econômica. Ontem mesmo o secretário de Relações Internacionais do Ministério da Fazenda usou uma dessas metáforas populares em seu contato com a imprensa. Ao se referir à decisão do governo de aumentar nossas reservas internacionais, ele pede calma na ação, ao lembrar que "o afobado come cru". Ele procurava certamente qualificar declarações anteriores de seu superior hierárquico, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, que, também em entrevista à imprensa, explicitou essa nova postura do governo.
Para responder ao nosso cauteloso secretário, vou recorrer também à sabedoria popular. Se o "afobado come cru", o "atrasado perde o trem"! O trem a que me refiro é uma metáfora para a situação internacional atípica que vivemos desde de que o Federal Reserve, o banco central americano, inundou o mundo com liquidez monetária.
Esse excesso de dólares provocou uma queda brutal dos juros de médio prazo na economia mundial. Diante de taxas muito baixas, os investidores passaram a buscar ativos de maior risco -e, portanto, que pagam juros mais elevados- para defender a rentabilidade de seus investimentos.
Essa situação de liquidez é claramente temporária. Os mais otimistas esperam que ela dure até as eleições americanas, no ano que vem. Os mais pessimistas falam em uma mudança ainda no primeiro semestre de 2004. Temos, portanto, menos de um ano para aproveitar essa liquidez farta e aumentar, como já fizeram vários países em desenvolvimento, nossas reservas externas.
Outra declaração importante, ou melhor, preocupante do sr. Canuto é a de que ele entende que devemos ir devagar na recomposição das reservas porque nossa vulnerabilidade externa é resultado principalmente de nosso passado de "déficits" fiscais. Repete aqui o raciocínio que foi dominante nos anos do ministro Pedro Malan e que foi desenvolvido na Escola de Economia da PUC do Rio de Janeiro.
Segundo o entendimento desse grupo de economistas, os agentes internacionais pautam suas decisões de investimento ou de especulação olhando para o equilíbrio macroeconômico do Brasil, e não para a realidade financeira de nossas contas externas. Afirmo que essa posição é perigosa e ingênua. A confiança na qualidade da gestão pública de itens importantes, como o Orçamento e o controle da inflação, é condição necessária para a estabilidade externa de uma economia como a brasileira. Mas não é suficiente para que, em tempos de crise, não ocorram ataques especulativos contra a moeda.
Principalmente porque a relação dívida pública e PIB no Brasil ainda é muito elevada. Nessa situação estrutural de tensão financeira, é preciso que essas duas percepções, a responsabilidade macroeconômica e a musculatura das reservas, ocorram simultaneamente para que se criem as condições de estabilidade externa. Uma nova metáfora me vem à mente: "É preciso de alma e porrete" para enfrentar esses bárbaros.
Uma outra forma de visualizar nossa fragilidade externa é considerar o descompasso entre o passivo externo ampliado e o volume de reservas do Banco Central. Chamo de passivo externo ampliado a soma de todos os contratos que existem em nossa economia e que têm o dólar, ou outra moeda forte, como referência. Esses contratos incluem as operações passivas em moeda forte, os ativos de empresas internacionais que operam no Brasil, os ativos financeiros denominados em reais e que têm um passivo em moeda forte na sua origem, as operações de comércio exterior de médio prazo, além de um valor, mais difícil de ser estimado, representado pelas operações especulativas contra o valor de nossa moeda em momentos de dificuldade.
A existência desse descompasso, entre reservas e passivo externo ampliado, é de conhecimento do mercado. Em momentos de possível crise de confiança em relação à taxa de câmbio, seja por motivação interna ou externa, ele potencializa a demanda por ativos indexados ao câmbio. A única forma de evitar uma crise externa, quando isso ocorre, é ter um volume adequado de reservas para acalmar os mercados.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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