São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um poço de luz

RUBENS RICUPERO

Há no romance de Cesare Pavese "La Luna ed i Fallò" ("A Lua e as Fogueiras") passagem na qual um aluno pergunta: "Professor, o senhor ama a Itália?". E o professor responde: "A Itália, não; eu amo os italianos".
Para alguns, muitos, quem sabe, será o inverso. Amam a Itália abstrata, cenário e paisagem, o museu do mundo, a pátria da beleza, a mãe do Ocidente. Nessa Itália imaginada como vitrina de exposição para o prazer sensorial dos visitantes, a presença de mulheres e homens de carne e osso apenas serve para atrapalhar a fruição. São os que insistem em rezar, impedindo que, na hora da missa, se possa contemplar nas igrejas o que foi pintado por Giotto e Carpaccio, Botticelli e Caravaggio. Ou os que, na luta pela vida, geram o pandemônio do tráfego, que perturba, na praça pública, a repousada degustação da escultura de Verrocchio e Michelangelo, a arquitetura de Bramante e Palladio.
Raros como Stendhal são capazes de entender que as obras não podem ser separadas do povo que as criou e professam pelo último fascínio até maior que pelas primeiras, pois é gente viva e palpitante. Não é fácil porque os italianos são particularmente contraditórios.
A começar pela contradição-mor, a de que, a rigor, não existem italianos. O que existe são piemonteses, lombardos, venezianos, toscanos, napolitanos, sicilianos. No país do particularismo, do "campanile", onde, no Pálio de Siena e em outras festas, cada bairro guerreia com suas cores, como falar em unidade de tipo nacional? Era o que sugeria Massimo d'Azeglio, ao completar-se a unificação política da península: "Fizemos a Itália; falta agora fazer os italianos".
Quando, 46 anos atrás, "La Dolce Vita", de Fellini, atingia o Brasil com o impacto de um meteorito, lembro o artigo no qual Alceu de Amoroso Lima falava das contradições de um povo ao mesmo tempo profundamente cristão e carnalmente pagão. Observava o dr. Alceu que nenhum outro país tinha produzido tantos santos, inclusive o maior de todos, Francisco de Assis. Mas, prosseguia, na mesma época em que o exemplo do "Poverello" e de são Domingos atraía milhares de jovens às ordens mendicantes, no instante em que Catarina de Siena obrigava papas e reis a fazer a paz, outras italianas lamentavam dos balcões, ao ver passar tantos belos frades jovens, tamanho desperdício de beleza e juventude, que assim se subtraía dos prazeres do mundo, em troca de vida de castidade e pobreza...
Escrevo entre duas peregrinações que sempre quis fazer e que a aposentadoria me tornou agora possível. A primeira, à Apúlia, origem de meus avós paternos; a segunda, a Sotto il Monte, Bergamo, na ponta oposta, onde nasceu João 23, para mim, a encarnação do Evangelho no século 20. Mesmo na Itália, poucos são os que chegam até o calcanhar da bota, o litoral do Adriático e do Jônico, fronteiro à Croácia, à Albânia, à Grécia. Dessa porta do Oriente, partiam as cruzadas, dos mesmos portos onde hoje desembarcam as multidões de clandestinos. Só uma vez, brevemente, há 18 anos, eu havia estado em Barletta, cidade de minha família. Pude afinal descer rumo ao sul profundo, a Lecce e a Otranto, o mar mais cristalino que jamais vi.
A Apúlia é a essência da luz mediterrânea, que ilumina as águas de azul translúcido e, principalmente, desenha os contornos da pedra onipresente, com alvura que cega. Branca é a cidade velha de Bari, casbá oriental de vielas, becos, casas que se superpõem como torrões de açúcar num enredado sem lógica aparente, cheio de caminhos sem saída.
Mais deslumbrante é Polignano a Mare, origem de tantos imigrantes que se radicaram na zona cerealista do Mercado Municipal, onde organizam a festa de são Vito; é a velha Neapolis grega, com suas altas casas tombando a pique sobre o mar de altura de 30 metros, confundindo-se com a cor das rochas calcárias, onde as ondas escavaram grutas de esmeralda. Mas a que vence todas em brancura absoluta e sem mescla é Ostuni, que até mesmo os degraus das escadarias numerosas caiou de branco imaculado.
É esse brilho ofuscante que nos acompanha sempre, no sul barroco, grego e bizantino, transição para a Sícilia ou em direção ao norte, perto de minhas raízes, onde os normandos e suábios transformaram o românico e o gótico, dando-lhes ares orientais. Inesquecível é a catedral de Trani, santuário-fortaleza de mármore puro que brota como espuma do anil do Mediterrâneo. Para o interior das terras, dominando bosques agrestes, ergue-se Castel del Monte, o misterioso castelo de caça ao falcão do imperador Frederico 2º, octagonal, de oito torres também octagonais, tudo se reportando ao 8, o "número perfeito", símbolo do infinito, a forma do Santo Graal. O poeta Raffaele Nigro descreveu o castelo como "um sol de pedra", cujas oito alas formam, em torno do pátio central, como que um imenso "poço que derrama luz".
Comecei o artigo insinuando que falaria dos italianos, não da Itália. Acabei falando de pedras, não de gente. Para que se saiba, porém, que é especial a gente que mora nessas pedras, transcrevo os versos de Torquato Tasso pintados nos degraus de uma escada de Polignano:
"Perduto è tutto il tempo (Perdido é todo o tempo)
ch" in amor non si spende" (que em amor não se consome).


Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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