São Paulo, sábado, 31 de outubro de 2009

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CESAR BENJAMIN

Continuamos reféns


Nossos juros continuam a ser uma anomalia, e o mercado de câmbio permanece sensível a movimentos especulativos

AS MAIS influentes escolas de economia, no século 20, foram aquelas que se esforçaram para conciliar o impulso à acumulação de capital, de um lado, e interesses gerais da sociedade, de outro. Ambos não são incompatíveis, mas tampouco são necessariamente harmônicos. A compatibilização é uma construção institucional.
Nas últimas décadas, porém, predominaram escolas que reduzem a economia a uma mera administração de negócios, recusando a sua condição de ciência social. Na prática, isso significa defender a máxima liberdade de atuação para o capital em todas as esferas, incluindo aí a mobilidade plena através das fronteiras nacionais.
Os defensores dessas medidas apresentam-se como representantes de uma pretensa ortodoxia. Nada mais falso. Até quase o final do século 20, nenhum economista sério, de nenhuma filiação doutrinária, considerou digna de exame a ideia de que quaisquer movimentos de capital deviam ser liberados. O pensamento econômico consolidado sempre defendeu a regulamentação. As diferenças eram apenas de ênfase, nunca de ponto de vista.
Por proposta inglesa, a primeira versão do acordo de Bretton Woods, que reorganizou o funcionamento do sistema capitalista após a Segunda Guerra, exigia que os países signatários estabelecessem regulamentações. Por concessão aos EUA, a versão final do acordo passou a recomendá-las. É essa a expressão que consta até hoje nos estatutos do FMI.
Até mesmo os EUA -cujo balanço de pagamentos é protegido pela condição de país emissor da moeda mundial- lançaram mão de controles quando instituíram o chamado "imposto de equalização" sobre a saída de capitais para a Europa. No Velho Continente, todos os países usaram controles extensamente até os anos 1990. A desregulamentação da conta capital na periferia também só começou nesta década e em poucos anos, como se previa, produziu crises em todos os continentes. No Brasil, foi patrocinada pelo Banco Central só a partir de 1992, por meio de uma série de resoluções cuja legalidade é discutível, para dizer o menos. China e Índia resistiram a essa experimentação aventureira.
O principal efeito da desregulamentação é tornar todo capital, potencialmente, capital estrangeiro, independentemente de quais sejam os seus titulares. Com um espaço permanente de manobra que ultrapassa o espaço da sociedade nacional, o capital passa a manter com ela apenas vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas de fazer bons negócios. Decide entrar quando quer, na forma que quer, para comprar quaisquer ativos, criando um passivo externo líquido. Pode sair a qualquer momento, ameaçando deteriorar o balanço de pagamentos ou gerar uma crise aguda.
Amplia-se assim a instabilidade potencial e alteram-se as relações de poder: a máxima liberdade para o capital corresponde à mínima liberdade para Estado e sociedade. Estes, para começo de conversa, perdem a capacidade de comandar as políticas monetária e cambial. Assim, são obrigados a conviver com sérias distorções no sistema de preços.
É o que estamos vendo. Nossos juros continuam a ser uma anomalia no sistema internacional, e o mercado de câmbio permanece muito sensível a movimentos especulativos. A persistente valorização da nossa moeda não reflete nada que esteja ocorrendo no âmbito da economia real. Resulta de operações de arbitragem entre taxas internas e externas de valorização de capital especulativo. Na situação atual, o Estado não tem como combatê-la. O imposto recém-instituído é uma medida tímida. Continuamos reféns.


CESAR BENJAMIN , 55, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

cesarben@uol.com.br


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