São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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Candidatos profissionais

Aumento do número de formados em direito leva ao surgimento do "bacharel em concursos"

JOSÉ FRANCISCO SIQUEIRA NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A carreira de direito é uma das mais promissoras pelas amplas possibilidades que oferece. Historicamente, esteve associada a ascensão profissional, social e até mesmo política.
Mesmo considerando o caráter elitista da educação superior e o conservadorismo preponderante nas faculdades, inegavelmente, no âmbito dos cursos de direito, foram geradas importantes referências culturais e políticas para o país.
Isso, contudo, não só pelos talentos individuais, mas, sobretudo, pela formação com ampla visão das estruturas jurídicas fundamentais e pela articulação com campos de conhecimento correlatos, como a economia e as ciências sociais.
Essa tradição de formação profissional vinha se mantendo, apesar de alguns percalços, até as últimas duas décadas, quando se verificou, de um lado, uma proliferação de novos cursos e, de outro, uma demanda maior por serviços jurídicos, como resultado de uma sociedade democrática, cada vez mais urbana e complexa.

Demanda reprimida
Pela lógica, essa nova realidade deveria impor ao ensino jurídico responsabilidades talvez maiores do que no passado, mas, infelizmente, isso não ocorreu. Ao contrário, tantas foram as facilidades à abertura de cursos que o ensino jurídico passou a ser apenas um bom e lucrativo negócio.
Aproveitou-se da demanda reprimida entre ensino médio e superior, da tradição e do fato de continuar sendo o direito, provavelmente, dentre todas as demais carreiras, a que oferece o maior leque de oportunidades de ascensão profissional.
No serviço público, por exemplo, as carreiras jurídicas são as mais bem remuneradas.
E, mesmo com uma forte tendência à proletarização (é cada vez maior o número de advogados empregados), ainda é na advocacia que se enxerga a figura do profissional liberal no sentido estrito do termo.
Esse quadro pressiona para a abertura de um número maior de cursos (que já passam de mil, embora há 15 anos não chegassem a 200) e pelo fim das barreiras ao ingresso no mercado, como o exame obrigatório aplicado pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Os novos bacharéis têm pressa diante de um mercado cada vez mais competitivo.

"Bacharel de concursos"
Daí resulta, nessa área mais do que em qualquer outra, o fenômeno do "bacharel de concursos", que, muito antes de concluir o ensino superior, programa-se exclusivamente para uma das muitas carreiras estampadas nos editais de concursos públicos. Juiz, com certeza, é a mais atraente. Mas promotor não fica muito atrás.
A perspectiva de um salário que permita formar patrimônio, da segurança de um plano de saúde, além, claro, do prestígio e da estabilidade torna essas carreiras não apenas atraentes, mas, em muitos casos, razão de ser de todos os anos de estudos e das noites maldormidas em cima de livros e apostilas.
Não é para menos. Até porque não se deve censurar quem sonha com a melhoria do seu padrão de vida e luta por ela.
Mas, se fôssemos confiar exclusivamente na sorte, o país baniria de seu território os empreendedores. A vida segue além das loterias, assim como dos concursos, que, antes de serem encarados como uma obsessão, melhor seria se fossem vistos como oportunidades naturais que a carreira oferece.
Há uma nítida diferença entre se preparar para uma carreira e se preparar unicamente para concursos. Preparar-se para uma carreira significa assumir o espírito crítico que a formação jurídica exige, com ênfase no entendimento do papel regulador que o advogado, o juiz e o promotor exercem na sociedade.
É necessário consolidar uma base humanística e ética para compreender que, na esfera da administração da Justiça, o rito de passagem se dá pelas portas de um bom curso de direito.
É esse ambiente que capacita seus alunos, até mesmo para prestar concursos públicos.
O desprezo dessa etapa, em nome da focalização nos concursos, gera profissionais deficientes e infelizes, a um custo futuro alto para a sociedade.

JOSÉ FRANCISCO SIQUEIRA NETO é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas



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