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Neuro

Debaixo d'água

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

Soprar no rosto da criança antes de mergulhá-la é um truque muito usado em aulas de natação

Estamos eu e as crianças na beira da praia, em Alagoas, cheia de piscinas naturais com peixinhos, ouriços e polvos a serem vistos.

Para isso, nada melhor que o snorkel: um tubo aberto na superfície que nos permite continuar a respirar enquanto boiamos com a cabeça afundada na água.

Aprender a usar o snorkel, contudo, requer passar por cima de uma resposta muito bem consolidada: normalmente, não respiramos debaixo d'água, sob pena de inundar os pulmões.

Em circunstâncias normais, três fontes de informação nos impedem de respirar no molhado: a visão de um mundo dentro d'água, a pele do rosto molhada, mas também os olhos.

É deles que vem a evidência mais inegável de estar em condições incompatíveis com a respiração. Pensamos neles como órgãos da visão, mas a córnea é rica em receptores táteis que detectam corpos estranhos, vento e até luz forte demais (por isso olhar para ela dói).

Ter esses receptores ativados de modo constante é sinal de que os olhos estão mergulhados em água ou vento, e o resultado é o mesmo: a respiração é momentaneamente bloqueada.

Por isso mesmo, soprar no rosto da criança antes de mergulhá-la na água é um truque usado em aulas de natação. Experimente você também: vá para baixo do chuveiro, vire o rosto para cima e tente continuar respirando normalmente com os olhos abertos. Não é impossível, mas é preciso um esforço consciente.

Ao manter os olhos secos, a máscara do snorkel ajuda muito. Mas resta, ainda, ignorar as evidências visuais e táteis de água ao redor do rosto para convencer o centro que controla a respiração de que está tudo bem e que respirar debaixo d'água será seguro. Começamos com hesitação e um bocado de ansiedade; leva tempo até conseguirmos deixar a respiração voltar ao ritmo normal, lento, debaixo d'água.

Da mesma forma que conseguimos voluntariamente passar por cima do esquema de segurança dos olhos contra afogamento, contudo, um outro esquema de segurança também pode falar mais alto do que qualquer evidência do contrário: quando o tronco encefálico recebe sinais do sangue de que o corpo está começando a ficar asfixiado... inspira-se por reflexo, não importa onde, inclusive debaixo d'água. Essa é a causa final da morte por afogamento: cedo ou tarde, o cérebro, em uma última tentativa desesperada de manter-se vivo, força a inspiração. Pena que dá errado...

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SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ e autora do livro "Pílulas de Neurociência Para uma Vida Melhor" (Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com

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