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Neuro

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - suzanahh@gmail.com

Para matar uma aranha

Causar a morte de um inocente é inaceitável para a maioria; o repúdio vem de áreas emocionais do cérebro

Em casa não é um problema: aranhas são no máximo papa-moscas e para a barata ocasional sempre há uma lata de inseticida à mão. Mas estou do outro lado do mundo, onde aranhas são parrudas, várias delas venenosas, e a recomendação de meu anfitrião australiano é de não deixá-las vagar impunemente por meu quarto.

Quando a primeira apareceu, portanto, fui logo em busca da lata de inseticida que me serviu durante a visita do ano passado, quando uma aranha do porte de uma caranguejeira vitaminada interditou a pia da cozinha por dois dias, até se dignar a morrer intoxicada. Mas nada da lata de veneno. Meu anfitrião se prontificou a vir matá-la, mas estava em uma conversa animada ao telefone. Restou-me encarar a aranha: por que não resolvia eu mesma o assunto?

Joshua Greene, pesquisador da Universidade Harvard, respondeu minha pergunta dez anos atrás, em um experimento elegante em que voluntários deveriam decidir o que fazer em uma situação hipotética em que poderiam causar a morte de uma pessoa para salvar outras cinco. Para a maioria, causar com as próprias mãos a morte de um inocente é inaceitável, ainda que em nome de um bem maior -e o repúdio vem de áreas emocionais do cérebro, não racionais. Mas, se há um intermediário, como uma alavanca a puxar, causar a morte alheia em nome de cinco vidas se torna uma empreitada menos pessoal e emocionalmente mais aceitável.

Era meu caso com as baratas. A chinelada tradicional foi banida do meu repertório na época da faculdade, quando uma aula de zoologia II cobriu a anatomia interna de baratas que havíamos empanturrado com biscoitos. Se já não me agradava acabar gratuitamente com uma vida, esmagar toda aquela anatomia era uma ideia mais repugnante do que a própria barata.

Desde então, meu método preferido é o inseticida. Do ponto de vista moral, é racionalmente péssimo: uma morte agonizante por intoxicação, em vez da morte instantânea por uma sapatada certeira. Mas o inseticida me afasta emocionalmente da barata.

Por isso, preferia intoxicar, e não esmagar, a aranha ao lado da cama. Mas o telefonema rolava animado e eu queria dormir. Busquei a vassoura, encarei a aranha, coitada, tão bonita... e, quando meu córtex pré-frontal se distraiu, meu córtex motor mandou ver. No dia seguinte, foi uma barata. Hoje, mais uma. Pronto: a prática dessensibilizou meu cérebro. Eu agora sou uma "serial killer" de baratas.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com

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