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Ultramaratonistas

O que move esse seleto grupo de corredores capaz de enfrentar provas sem fim, temperaturas extremas e dores no corpo?

Dado Galdieri/Folhapress
A carioca Manuela Vilaseca, 34, durante treino na Floresta da Tijuca, Rio
A carioca Manuela Vilaseca, 34, durante treino na Floresta da Tijuca, Rio

RODOLFO LUCENA
COLUNISTA DA FOLHA

"Eu estava exausta, com fome e muita sede. Tinha câimbras alucinantes nas mãos. Não conseguia segurar o garfo, e as pessoas me olhavam com cara de espanto."

Manuela Vilaseca, 34, tinha acabado de completar uma corrida por vales e montanhas da Patagônia, no sul da Argentina. Depois de 34 horas e 27 minutos, foi a campeã feminina nos duríssimos 160 km de La Mision, a primeira ultramaratona da atleta carioca, dona de uma loja de quadros e molduras.

Ultramaratonas são corridas a pé em distâncias maiores do que os 42.195 metros da já exaustiva maratona. Há desafios de todo o tipo: 50, 80, 160 quilômetros...

Também podem ser disputadas por tempo, ganhando quem faz mais quilometragem ao longo de seis horas, 48 horas, seis dias ou mais.

Há provas no asfalto nosso de cada dia, mas as que mais seduzem são as realizadas em montanhas ou trilhas, em condições extremas de temperatura, que testam não só a resistência, mas a própria capacidade de sobrevivência do corredor.

Não são empreitadas para qualquer um. Mesmo assim, é crescente o número de pessoas que buscam esse gênero de aventura.

Nos Estados Unidos, o número de concluintes aumentou em 50% de 2008 a 2010. No Brasil, não há estatísticas, nem mesmo sobre o número total de provas. Foram pelo menos 20, segundo compilação do site Atividade Fisica (www.atividadefisica.net), mais que o dobro de maratonas convencionais realizadas no país no ano passado.

POUCOS APAIXONADOS

Algumas provas ficam em poucas dezenas de participantes. A mais tradicional no Brasil, a Supermaratona de Rio Grande, de 50 km, teve no ano passado 208 concluintes. Em sua primeira edição, em 1994, foram 27.

São poucos, mas apaixonados. "Depois que descobri as 'ultras', toda aquela quilometragem foi me envolvendo, dava uma sensação de ser superpoderosa por papar tanto chão", diz Débora Simas, recordista da BR 135, corrida de 217 km em montanhas de Minas Gerais e São Paulo.

A norte-americana Pam Reed, primeira mulher a vencer a ultramaratona de Badwater, que tem 217 km e é considerada a mais difícil do mundo, concorda.

"Completar uma ultramaratona pode mudar a sua vida. É preciso ser um atleta de um tipo especial. Você tem bolhas, perde as unhas, sofre câimbras, tem dores estomacais e outros tipos de problema. É muita coisa apenas para provar para você mesma que é capaz. Se você faz uma 'ultra', faz qualquer coisa".

Essa consciência -ou essa crença- é um dos maiores motivadores dos "ultras", na opinião da psicóloga do esporte Katia Rubio, professora e pesquisadora da USP.

"Vivemos em uma sociedade em que somos desafiados a todo o instante a nos superar, seja no trabalho, seja nas relações afetivas e sociais. O esporte acaba casando como uma luva, porque ele é socialmente aceito e recomendando, ainda que seja para atividades tão fora do padrão."

Motivações psicológicas à parte, os ultramaratonistas dizem se sentir bem com o que fazem. "Gosto pela possibilidade de, sem ficar ofegante, correr horas ao lado de um amigo e falar sobre vários assuntos", diz João Gabbardo dos Reis, médico que, no ano passado, correu 160 km em uma prova de 24 horas. "O melhor tempo de minha vida veio agora, aos 56 anos."

Essas provas exigem mais maturidade dos desafiantes.

TREINOS LONGOS

Valmir Nunes, principal ultramaratonista do país e treinador, afirma: "O ideal é a pessoa começar com provas de menores distâncias, fazer algumas maratonas e depois passar para a 'ultra'. Tem que gostar de treinos longos."

A grande exigência para quem quer enfrentar esse desafio é ter tempo para treinar. Jornadas de quatro, cinco horas correndo em ritmo descansado são a recomendação de vários treinadores. Os treinos podem ser divididos (duas horas pela manhã, duas à tarde, por exemplo), mas interferem na rotina.

Mesmo assim, os mais jovens vêm se aventurando nessa trilha. Aos 31, o empresário Gustavo Fabiano fez a sua primeira "ultra" no ano passado, apesar de correr desde a adolescência.

"Correr uma maratona não me satisfazia mais, a superação dos limites sempre me interessou", diz ele, que participou em julho de uma corrida noturna de 12 horas. Tirou o primeiro lugar na sua faixa etária e ficou tão entusiasmado que já se inscreveu para correr uma prova de 24 horas.

Essa fome por mais e mais é uma constante. Militar da Força Aérea, Jorge Cerqueira, 45, se apresenta como Jorge Ultramaratonista e fez cinco provas do gênero em 2011.

Mesmo número contabilizado pelo jornalista Harry Serrao, 38, um dos poucos brasileiros a enfrentar com sucesso os 246 km da Spartathlon, prova que vai de Atenas a Esparta, na Grécia.

O analista de sistemas Marcio Villar, 44, deixa os dois para trás: completou seis, uma delas de 217 km na neve, sob 50º C negativos. E sonha em bater o recorde mundial de sete dias em esteira.

Parece absurdo, considerando que especialistas em esporte recomendam no máximo duas maratonas por ano. E pode ter ares de compulsão, alerta o psicólogo do esporte e ultramaratonista Oscar Francisco Prisco Silva.

"[O risco] é que traga para a pessoa uma satisfação momentânea, um bem-estar tão grande que ela perca a noção da realidade. O apaixonado é endorfinado, vive intensamente o momento, mas não planta nada para o futuro."

PODER CURATIVO

Porém, a corrida em distâncias muito longas tem potencial curativo, segundo o empresário campineiro Roberto Filho, 34: "Tive problemas emocionais e até pensei em tirar minha vida. No ano passado, decidi voltar a correr e encarar um desafio maior que minha depressão, uma corrida de 12 horas."

Tendo corrido no máximo, até então, os 15 km da São Silvestre, conseguiu 84.475 metros no desafio. "Foi muito acima do que podia imaginar. Foi tão bom que superei a depressão. Sempre que vejo algo difícil na frente, lembro que tenho que ser ultra em tudo, pois é devagar que se chega longe."

Veja o calendário 2012 de ultramaratonas em
folha.com/no1042678

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