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Outras Ideias

ANNA VERONICA MAUTNER amautner@uol.com.br

O cotidiano também faz história

Fico contente se me caem nas mãos livros sobre insignificâncias, como por exemplo a história da alcachofra

Dos relatos de história - grandes navegações, guerras, novas descobertas- chegamos, hoje, ao uso da mesma palavra para anotar não mais grandiloquências, mas pormenores do dia a dia.

Fico contente quando me caem nas mãos livros que tratam de insignificâncias. Como a história da alcachofra, por exemplo. Essa planta foi se modificando Mediterrâneo afora, passando por banquetes de casas reais, como conta o recém-lançado entre nós "A Fabulosa História dos Legumes". Nele, a autora, Évelyne Bloch-Dano, deixa de se referir às pessoas que os trouxeram e levaram e se atém à origem e à diáspora dos próprios vegetais.

Um dia, a batata chegou à Europa, vinda da América recém-descoberta, o que revolucionou a culinária.

Hoje, o ritmo da introdução e da apropriação de elementos de outra cultura é muito mais rápido. Hábitos e costumes vão e vêm de avião, por telefone e por outros tantos recursos de comunicação, modificando o cotidiano.

Mas a gente se defende, por apego às tradições. Podemos até achar massa folhada uma delícia, mas não aposentamos o nosso "romeu e julieta" (queijo com goiabada), pelo menos não de repente.

Outro livro, o incrível "A Lebre com Olhos de Âmbar", também recém-lançado no Brasil, relata as mudanças dos pormenores cotidianos entre membros de uma família que o destino espalhou entre Viena e Tóquio. O autor, Edmund de Waal, vai descrevendo da diáspora da família até o reencontro, anos depois.

A literatura invadiu o cotidiano. Quando Proust leva dez páginas contando a angústia dele esperando a mãe vir dar o beijo de boa noite, muda-se o enfoque: o fundo passa a ser figura.

Estamos no centro do viver há mais de cem anos numa família burguesa.

Cada família nuclear talha, como uma escultura feita no dia a dia, o seu jeito de ser. É o homem comum tentando criar uma identidade a partir de seus próprios hábitos.

Pode-se argumentar que sempre foi assim. A diferença é que hoje a transmissão, além de ser oral, é também artística. Está na literatura.

E assim nós descrevemos. Hoje se escreve sobre os escaninhos nada secretos do cotidiano da família nuclear, que não quer ser igual à família vizinha. É a formação de parte importante da identidade, nossa existência, à qual cada um de nós se apega.

A história da vida privada é a vitória do cotidiano como modelador do jeito de ser de cada um e de cada família.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus)

NA PRÓXIMA SEMANA
Rodolfo Lucena

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