Índice geral Equilibrio
Equilibrio
Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Acumuladoras de bichos

Colecionadoras de animais depositam o sentido da vida nessa 'missão' sem saber que podem estar sofrendo de um grave transtorno obsessivo-compulsivo

Gabo Morales/Folhapress
Raimunda dos Santos, que abriga cerca de 50 gatos em sua casa, na zona leste de São Paulo
Raimunda dos Santos, que abriga cerca de 50 gatos em sua casa, na zona leste de São Paulo

JULIANA CUNHA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Pensei que já tivesse visto de tudo até ir trabalhar no Controle de Zoonoses", conta a assistente social Marília Berzins, que por cinco anos visitou casas que abrigavam dezenas de animais em condições precárias. "O pior caso foi o de uma senhora que criava 200 cães numa fábrica abandonada."

A tarefa de Berzins era visitar pessoas intimadas pela prefeitura após denúncias. Desde 2001, a lei 13.131 proíbe manter mais de dez bichos em residências de São Paulo.

Embora clara, a regra não é tão simples de ser aplicada aos chamados colecionadores: pessoas que depositam o sentido da vida na relação com bichos. "Depois que o veterinário e o agente sanitário iam embora, a tarefa de dar conta daquela vida humana era nossa."

Quando a prefeitura bate à porta, o dono dos bichos recebe prazo de um mês para se desfazer de parte dos animais. Quem comprova ter condições de criar mais de dez pode pedir licença especial e manter até 15. Após o prazo, a multa por descumprir a lei é de R$ 100 (dobra na reincidência).

"Reconhecer a casa que sofreu denúncia é fácil: costuma ser a mais maltratada, na rua mais sem saída. Vizinhos colocam apelidos na moradora, chamam de bruxa dos gatos, de cachorreira", diz Berzins.

Conhecido como "animal hoarding" ou colecionismo de animais, o hábito de acumular bichos em casa pode ser uma forma grave do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).

É um distúrbio que talvez venha a ser inserido na próxima edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (a bíblia da psiquiatria) como pertencente a um grupo de transtornos colecionistas. Está em pesquisa, o que explica a dificuldade em achar especialistas no Brasil.

"Estudos recentes indicam semelhanças entre o 'hoarding' animal e o colecionismo de objetos e traçam relação com TOC", explica Carmem Beatriz Neufeld, pesquisadora do departamento de Psicologia da USP de Ribeirão Preto e presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas.

TRABALHO EXCESSIVO

Para Aristides Cordioli, psiquiatra e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é difícil estabelecer a diferença entre um "animal hoarder" e alguém que apenas tem muitos animais: "Merece tratamento quando atrapalha a vida, gera reclusão e trabalho excessivo. Mas essas pessoas não reconhecem que passaram do limite. Poucas buscam ajuda antes de a situação se tornar insustentável".

Três horas diárias e R$ 450 mensais é o que a designer Lilian Rega, 27, gasta para manter três cachorros, nove gatos e uma chinchila, habitantes "vip" do sobrado que divide com o namorado e outros dois "roommates", no Jabaquara.

"Tem essa lei impedindo a gente de ter mais de dez animais, mas trato bem, tenho espaço. Quem quiser pode vir ver que é tudo limpo", diz.

O andar de cima é reservado aos gatos. O térreo e o quintal são domínio dos cachorros: "Não misturo porque gatos e cachorros têm linguagens corporais muito diferentes, podem acabar se machucando".

Pela manhã, Lilian diz gastar uma hora e meia para limpar a caixa de areia dos gatos, lavar o quintal dos cães, pentear e alimentar todos. Quando volta do trabalho, é hora de deixar a chinchila livre por minutos em um quarto "à prova de chinchilas" (sem frestas por onde o roedor possa fugir).

Só depois desse processo é que ela senta no sofá, com um ou dois gatos no colo, e conta ao namorado como foi o dia.

Para Lilian, que não se considera colecionadora, animal é sinônimo de apego, companhia, dedicação e abnegação. Por eles, ela declinou de uma oportunidade profissional no exterior: "O trabalho duraria seis meses, eu não tinha como mudar toda a estrutura dos meus bichos para outro país e voltar em tão pouco tempo".

Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.