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Depoimento

'As pessoas são cruéis comigo e com os gatos. Um chefe espirrou perfume em mim'

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Maria Raimunda dos Santos, 36, auxiliar de serviços gerais, conta a história de sua vida, que se mistura com as histórias das centenas de gatos que ela já criou.

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"A Rai sem os gatos não é a Rai, não existe. Se chego aqui e eles não estão pela casa, morro. Dá uma coisa ruim só de pensar. Faz 14 anos que cuido de gato. Cheguei a ter cem, mas era outra época, era uma Rai que mais gostava do que entendia, sabe?

Não sabia que tinha que castrar, mas também era tão caro e tão mais difícil. Teve época que eu tinha 40 adultos e todos iam entrando no cio. Cheguei a ter 52 filhotes de uma vez. Era triste, não tinha espaço, muitos morriam.

Eu era mais egoísta naquele tempo, não queria que eles fossem embora, pensava 'onde come um, comem dez'.

Hoje, se você vier dizendo que quer um dos gatos e for uma pessoa boa, com melhores condições que eu de cuidar, eu dou um pra você. Não dou a Laila ou o Olim, que estão comigo há 13 anos, mas, se quiser a Cleo, que está há quatro meses, dou.

Mas, quando você já tem um tempo nisso de criar gato, você fica com dificuldade para acreditar nas pessoas. Falam uma coisa e fazem outra. Não é como gato. Gato você sabe que pode te morder, arranhar. Você conhece.

Não sei bem quantos eu tenho, acho que são 33 adultos, sete filhotes e mais cinco recém-nascidos que chegaram hoje. Tenho também três cachorros em casa e mais uns sete ou oito que cuido na rua.

Às vezes, passo dois meses sem nenhum gato novo. Mas é raro, porque vejo na rua e dá pena de não pegar e também porque as pessoas jogam muito gato aqui. Empurram a ripa da janela e jogam.

Eu brinco que eu banco os gatos e a minha mãe me banca nessa questão de comida. Como na casa dela. Não dá para cozinhar aqui. No máximo, tomo café, como um miojo, mas comida mesmo não dá, porque eles avançam em cima. Não dá para sentar na cama ou no chão e comer de verdade. Aqui eu só cozinho a comida dos cachorros, porque eles não gostam de ração.

Não sobra dinheiro. Ganho R$ 630 com os descontos, mas gasto mais que isso em ração. A última vez que fui ao cinema, assim, eu pagando, foi em novembro, para ver 'Amanhecer'. Gosto muito da série 'Crepúsculo'.

Queria dar uma vida decente para os gatos. Queria que não ficassem doentes por causa da minha casa. Quando você põe muitos num espaço pequeno, eles desenvolvem fungo, rinotraqueíte.

A Laila, que está comigo há 13 anos, teve que fazer cirurgia. Olhei para ela no dia do raio-X e foi triste porque prometi uma vida legal pra ela, casa boa, ração boa. E não fiz nada disso.

Já fiquei em dois empregos para ver se melhorava, vendo Avon e Natura, mas não adianta, eles sempre são mais do que posso manter.

Aqui tudo tem prazo de validade. O fogão dura sete meses, depois vai despedaçando pelo xixi dos gatos e porque tenho que lavar a casa muitas vezes por dia.

As pessoas são cruéis. Comigo e com os gatos. Já tive chefe que espirrou 'Bom Ar' em mim, disse que eu fedia a gato. O motorista do ônibus fretado disse pra eu me retirar porque meu cheiro incomodava e daí eu não pude mais ir pro serviço de fretado.

Tive três namorados em 14 anos. O último faz cinco anos. Nossa, cinco anos! A última vez que beijei na boca. Se conheço alguém, é só falar que tenho muito gato que já cria barreira, então, já falo logo.

Mas não é algo que me faça falta. Sinto mais falta de beber Coca-Cola e de dormir com meus gatos do que de beijar na boca.

Meu maior medo é que alguém venha na minha casa e pense que, em vez de ajudar, eu estou atrapalhando e que tire os gatos de mim.

Uma vez abri mão dos meus gatos, fiquei só com 25. Foi difícil. Sentei e chorei até não ter mais nada dentro de mim. Foram tantas camas, tantos colchões que eu tive que jogar fora, tanto trabalho e, no final, não adiantou nada. No fim, eles tiveram que ir embora, eu não tinha condição de cuidar deles.

Já vai dar um ano que vieram umas ONGs e levaram os gatos mais fáceis de adotar. Depois levaram os que precisavam de médico. Levaram quase 70 gatos meus. Pensei que eles iam voltar, sabe? Mas as moças da ONG não quiseram me dar de volta. Entendi que eles estavam num lugar melhor. Mas dói, sabe?"

FOLHA.com

Veja o depoimento completo de Maria Raimunda dos Santos
folha.com/no1081620

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