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Vida Real

DENISE FRAGA - denise-fraga@uol.com.br

Blackout do dia

Nós estamos cada vez mais distantes da possibilidade da escuridão e do silêncio plenos

Ando fazendo ioga. Digo "ando fazendo" porque ainda não consegui a constância ideal. Os dias correm em ciclone, não sou muito disciplinada, mas, mesmo assim, tenho feito progressos.

Aprendi a fechar os olhos. Não parece coisa que careça ser ensinada, mas nossa vida corrida requer olhos tão abertos que é incrível como acabamos por fazer tão poucas vezes algo tão simples e revelador. Acho que tem muita gente que deve fechar os olhos só para dormir.

Eu mesma, nos últimos tempos, andava assim. E, quando fechava os olhos, mal podia aproveitar a sensação porque logo caía no sono.

Ultimamente, experimento fechar os olhos até ao sol do meio-dia. É incrível. Vemos muito fechando os olhos.

Somos muito cegos com os olhos abertos. Vivemos bombardeados de estímulos.

Quando fechamos os olhos, a princípio, já ouvimos mais. Se conseguimos permanecer assim por um tempo, então, vamos entrando no túnel de nós mesmos. No poder do escuro, do nada.

Sempre adorei o blackout no teatro. Principalmente aquele que antecede o começo da peça.

Nessa hora do que está por vir entramos em verdadeiro contato com a esperança.

Fechar os olhos no meio da avenida Paulista, por exemplo, dá um blackout rápido em nossa existência, na história que fazemos aqui. Se bem usado, pode, algumas vezes, nos nutrir de esperanças para o próximo ato.

Quando era pequena, adorava quando acabava a luz. Minha mãe, precavida, nos punha em roda, brincando, à espera. Eu sentia minha família. Adorava o escuro, seu perigo e tudo que se via a partir dele. Até hoje, quando há queda de energia, corro à janela para ver se foi geral.

Há algum recanto do meu ser que torce para que todos nós, juntos, experimentemos o poder da escuridão. A começar pelas portas que se abrem à criatividade diante da impotência gerada pela falta de energia. Ultimamente, então, se a escuridão demorar muito, pode fabricar uma verdadeira revolução.

Imagine se um blackout perdurar a ponto de não conseguirmos recarregar nossas baterias? Não chego a torcer por isso, mas sinto que estamos cada vez mais longe da possibilidade do escuro e do silêncio plenos. Quiçá já existam até cidadãos adultos que nunca os conheceram.

Atualmente, estou fazendo uma peça em que preciso entrar em cena no blackout. Entro em cena com um mar de luzes azuis nas mãos de pessoas desesperadas a desligarem seus aparelhos. É uma imagem linda, mas está longe de ter o mesmo poder.

DENISE FRAGA é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo)

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Suzana Herculano-Houzel

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