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Depoimento

Não dá pra não ter

MARION STRECKER
COLUNISTA DA FOLHA

Claro que dá pra não ter. Mas não ter é só para radicais, libertários, desprendidos ou os que têm uma vida regrada junto a telefones fixos.

A maioria acha que não dá pra não ter um celular. Eu também, embora saiba que dá. Virou dependência. Nós achamos que precisamos e os outros também esperam isso de nós. "Como? Você não tem celular?", perguntam, como se a pessoa fosse um ET.

Uns têm um. Outros têm dois ou mais. Ainda mais no Brasil, com esses planos de telefonia complexos e incomparáveis. Para driblar os preços absurdos o consumidor é levado a ter linhas diferentes, de modo a só ligar do seu Tim para os amigos que usam Tim, do seu Vivo para os que usam Vivo e assim por diante. Parece loucura. Mas é uma tentativa de economizar.

Digo tentativa porque nunca gastamos tanto com telecomunicação quanto na atualidade. Virou item de primeira necessidade.

Quanto tempo, dinheiro e energia gastos com aparelhos que quebram, ligações interrompidas ou inaudíveis e contas difíceis de entender.

Lojas cheias. Filas e senhas para sermos atendidos, que aceitamos como cupons de comida em tempo de guerra.

Um amigo comparou a importância de seu celular à do maço de cigarro, quando fumava. Até o tamanho é parecido, observou. Checar o celular é a primeira e a última coisa que faz todos os dias. Como era com o cigarro.

O celular é uma das coisas mais íntimas que alguém pode ter, reunindo e revelando as relações pessoais, seus dias, suas horas, suas vozes, suas frases, seus conteúdos.

Perder ou achar um traz emoções e angústias. "Back-ups", para quem pode e consegue fazê-los, não resolvem. Perder o aparelho ou tê-lo roubado é como vestir uma saia que se levanta ao vento: vai bem para as Marilyns Monroes. Não para a maioria.

O aparelho está sempre fazendo volume no bolso, vibrando, emitindo sons, interrompendo a conversa, atrapalhando os outros.

O mito é ter o mundo nas mãos. A realidade é se tornar um escravo do aparelho.

Uma forma de mostrar quem manda nessa relação é manter o celular desligado. E só ligar quando quiser usá-lo. Mas os outros, as empresas, os aplicativos não deixam. Ficam com demandas e provocações, alertas e buzinaços.

Meu celular dito inteligente me causa alta ansiedade. Se está por perto, ligado e à vista, sinto toda hora a tentação de checar o que se passa ali. Então escondo, desligo e às vezes "esqueço" em casa.

Meu filho teve dois celulares roubados quando era adolescente: um na porta de casa, na mesma rua Sabará onde Caroline Silva Lee, 15, foi assassinada por um ladrão de celular semana passada. Outro roubo ele sofreu no banco de um ônibus, quando teve sangue frio para negociar com o ladrão que o deixasse com o chip. Conseguiu.

Minha filha de 14 anos é mais viciada do que eu. Brinco que a geração dela ficará com patolas enormes no lugar dos dedões, de tanto digitar. Ela também dorme e acorda com ele (o álibi é o despertador). Leva o fulano para a escola, o banheiro, a praia, a neve, onde for. Só não surfou com ele, ainda.

O aparelho dela faz movimentos e sons o tempo todo, o que acho infernal, mas ela, não. Teme ser roubada, mas não se preocupa com quebra de privacidade. Confia na senha que colocou ali e conta que seu aparelho promove apagão geral de conteúdo na décima vez que alguém tenta usar uma senha inválida.

Mas a história mais inusitada que ouvi foi a de uma amiga que levou o aparelho no bolsinho do avental para dentro da sala de parto. Seu primeiro filho nasceu. Enquanto ela era costurada, começou a digitar para contar as novidades aos familiares.

Ela já foi multada muitas vezes por usar o celular ao dirigir e teve muitas brigas com o marido por causa do aparelho, que considera uma espécie de amante. "Ou ele ou eu", o marido disse várias vezes em discussões. Hoje, ela acha que a pressão do marido a educou.

Mas, quando ele a flagrou com o aparelho na mão ao ser costurada, ela teve medo de perdê-lo justo no dia em que seu filho nascia. No entanto, o marido decidiu fotografar a cena para ficar na história.

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