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Neurociência - Suzana Herculano-Houzel
Saudade, memória do futuro
Estou há duas semanas nos EUA, sem
crianças nem marido. O marido ficou
ocupado com a obra em casa,
as crianças ficaram ocupadas
com suas férias na companhia do pai -e eu, enquanto
não estou ocupada descobrindo no microscópio de
quantos neurônios é feito o
cérebro dos macacos, morro
de saudades de casa.
Não conheço estudos sobre essa sensação específica,
mas dois trabalhos recém-publicados dão a dica. Um
mostra que as mesmas partes do cérebro que usamos
para nos lembrarmos do passado são usadas quando fazemos projeções para o futuro.
O outro, por sua vez, demonstra que pacientes que
sofrem do tipo de amnésia
que os impede de se lembrarem do passado são igualmente incapazes de se imaginar no futuro.
Junto os pedaços com o fato de que nosso cérebro é capaz de evocar sozinho estados emocionais semelhantes
àqueles provocados por situações reais e fico pensando
se a tal memória do futuro
baseada no passado não seria
a responsável pelo meu estado avançado de saudade.
Como o primeiro passo para abordar um problema
cientificamente é defini-lo,
mando um e-mail para meu
marido, escritor e tradutor
bem versado nas artes semânticas, pedindo a definição do "Houaiss" para "saudade". A resposta chega em
algumas horas, quilométrica
como sempre (uma das vantagens de ser casada com um
escritor), com o verbete (sobre melancolia, incompletude, sensação de privação e
memórias desejáveis), comentários detalhados (impublicáveis, mas versando
essencialmente sobre a verbosidade desnecessária do
verbete) e uma definição
mais objetiva oferecida por
meu marido: "expectativa
por algo que já foi e que deseja-se que volte a ser".
Perfeito. Não é à toa que
imaginar o aconchego do
abraço dele e o sorriso dos
meus filhos me deixa o coração apertado e o cérebro ansioso para chegar em casa.
Minha saudade deve ser fruto da capacidade do meu cérebro de sentir falta das pessoas que eu amo, lembrar-se
da sensação da sua presença
e projetar-se em sua companhia novamente.
Meu vôo parte em duas horas e meu medinho de avião
me lembra que essa deve ser
a dor maior de perder uma
pessoa querida: a certeza de
que memórias de um futuro
próximo com ela não se realizarão. Felizmente, no meu
caso, minha saudade é uma
memória do futuro razoavelmente segura. Até onde sei,
todos estão vivos e bem, as
estatísticas aéreas estão a
meu favor e, em cerca de 15
horas, devo estar de volta. A
saudade dói, mas ela me leva
para casa.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de
"O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent) e de "O Cérebro em Transformação"
(ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br
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