São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2010
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[+]corrida

Rodolfo Lucena

Pensar não engorda

Fiquei chocado e indignado quando, ao chegar para meu treino na Cidade Universitária, vi a propaganda a gritar: "Não pense. Corra". O slogan da Nike, exposto nos relógios que indicam horário e temperatura, era até ofensivo à academia, templo da inteligência, da busca do conhecimento.
A propaganda propõe o oposto do que busco na corrida -um momento em que a mente possa descansar e voar, embalada pelo suor e pelas passadas.
Nos treinos, resolvo em pensamentos casos do trabalho, defino títulos, rascunho mensagens, imagino contos, medito sobre as dificuldades e as alegrias da vida e do amor ou simplesmente deixo a mente, os sentidos todos alertas e abertos para ouvir, cheirar, ver, compartilhar com o mundo o que o mundo quiser me dar.
Recomendar que o corredor não pense cheira a heresia: vai contra a natureza do próprio movimento, que exige raciocínio para existir.
A psicóloga do esporte Sâmia Hallage explica: "Existem comportamentos que estão condicionados, que fazemos automaticamente.
Mas, para que se tornassem automáticos, tivemos que pensar em algum momento.
Os movimentos da corrida podem estar automatizados, mas pensamos -e muito- quando corremos".
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP, professora Lucia Santaella, ensina: "Só a morte nos levaria a parar de pensar. O pensamento, não necessariamente verbal, nos acompanha. Até mesmo o sonho é um tipo de pensamento".
Para o competidor, é essencial estar "focado", diz o especialista em treinamento Rodrigo Ferraz: "Quem está com o pensamento direcionado apenas para o que está fazendo leva vantagem sobre os que estão dispersos".
Não é de estranhar, então, que a campanha da Nike tenha suscitado críticas. A empresa pensou e resolveu modificar a propaganda do seu novo tênis de corrida -os cartazes colocados nos relógios da USP no início de março foram trocados no último fim de semana.
"O que se buscou com essa campanha foi valorizar um atributo do produto", diz o gerente de marketing da categoria running, Christiano Coelho. Mas não deu muito certo, admite: "Concordamos que pode haver um entendimento dúbio por quem não é desse universo da corrida. A gente está trocando para poder ter uma mensagem mais neutra, que evite qualquer mal-estar".
E tem outra: pensar não engorda, como me garante a nutricionista Patrícia Oliveira: "Também não emagrece, mas ajuda a refletir e acalmar. Ficamos menos ansiosos e, consequentemente, comemos menos".
Por isso, pense e corra. Ou corra. E pense.


RODOLFO LUCENA , 53, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando: Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record) e de "+Corrida" (Publifolha)

rodolfolucena.folha@uol.com.br

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"As únicas coisas que acontecem conosco sem pensar são a respiração, os batimentos do coração, as reações químicas, os instintos e os reflexos condicionados. O resto precisa pen-sar."
JOEL TEDESCO, doutor em medicina de urgência pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP


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