|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
[+]corrida
Rodolfo Lucena
Pensar não engorda
Fiquei chocado e indignado quando, ao
chegar para meu
treino na Cidade
Universitária, vi a propaganda a gritar: "Não pense. Corra". O slogan da Nike, exposto nos relógios que indicam
horário e temperatura, era
até ofensivo à academia,
templo da inteligência, da
busca do conhecimento.
A propaganda propõe o
oposto do que busco na corrida -um momento em que
a mente possa descansar e
voar, embalada pelo suor e
pelas passadas.
Nos treinos, resolvo em
pensamentos casos do trabalho, defino títulos, rascunho
mensagens, imagino contos,
medito sobre as dificuldades
e as alegrias da vida e do
amor ou simplesmente deixo
a mente, os sentidos todos
alertas e abertos para ouvir,
cheirar, ver, compartilhar
com o mundo o que o mundo
quiser me dar.
Recomendar que o corredor não pense cheira a heresia: vai contra a natureza do
próprio movimento, que exige raciocínio para existir.
A psicóloga do esporte Sâmia Hallage explica: "Existem comportamentos que
estão condicionados, que fazemos automaticamente.
Mas, para que se tornassem
automáticos, tivemos que
pensar em algum momento.
Os movimentos da corrida
podem estar automatizados,
mas pensamos -e muito-
quando corremos".
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologias da Inteligência e
Design Digital da PUC-SP,
professora Lucia Santaella,
ensina: "Só a morte nos levaria a parar de pensar. O pensamento, não necessariamente verbal, nos acompanha. Até mesmo o sonho é
um tipo de pensamento".
Para o competidor, é essencial estar "focado", diz o
especialista em treinamento
Rodrigo Ferraz: "Quem está
com o pensamento direcionado apenas para o que está
fazendo leva vantagem sobre
os que estão dispersos".
Não é de estranhar, então,
que a campanha da Nike tenha suscitado críticas. A empresa pensou e resolveu modificar a propaganda do seu
novo tênis de corrida -os
cartazes colocados nos relógios da USP no início de março foram trocados no último
fim de semana.
"O que se buscou com essa
campanha foi valorizar um
atributo do produto", diz o
gerente de marketing da categoria running, Christiano
Coelho. Mas não deu muito
certo, admite: "Concordamos que pode haver um entendimento dúbio por quem
não é desse universo da corrida. A gente está trocando
para poder ter uma mensagem mais neutra, que evite
qualquer mal-estar".
E tem outra: pensar não
engorda, como me garante a
nutricionista Patrícia Oliveira: "Também não emagrece,
mas ajuda a refletir e acalmar. Ficamos menos ansiosos e, consequentemente,
comemos menos".
Por isso, pense e corra. Ou
corra. E pense.
RODOLFO LUCENA , 53, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor
de "Maratonando: Desafios e Descobertas
nos Cinco Continentes" (ed. Record) e de
"+Corrida" (Publifolha)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
maiscorrida.folha.com.br
"As únicas coisas que acontecem conosco sem pensar são
a respiração, os batimentos do coração, as reações químicas,
os instintos e os reflexos condicionados. O resto precisa pen-sar."
JOEL TEDESCO, doutor em medicina de urgência pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Texto Anterior: Transpire: Clac-clac Próximo Texto: Impaciência já Índice
|