São Paulo, quinta-feira, 02 de abril de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Dulce Critelli

O prazer do mal


[...] ESSE PSEUDOVALENTÃO NÃO É APENAS FRIO OU INSENSÍVEL, ELE É MAU; PARECE TER O PRAZER DA PERVERSIDADE

Quando a gente pensa que aquele golpe de telefonemas simulando sequestros já acabou, acontece de novo perto da gente. Desta vez, foi com a mãe de uma amiga.
São sempre sequestros de filhos chorando e pedindo ajuda. Sempre a cobrar e à noite. Ou, quando não anunciam um sequestro, é um policial falando de um acidente com vítima.
Já recebi um telefonema desses, não à noite, mas à tarde. A mesma musiquinha de interurbano. Não desliguei por curiosidade. Uma jovem chorando. Dei um pouco de trela e, quando disse que não tinha filha, desligaram.
É claro que, não tendo filhos, estava totalmente livre para ouvir uma ligação dessas. Mas penso nessa velha senhora que, por coincidência, estava sozinha em casa na tal noite. Com mais de 80 anos, ao atender a ligação ouviu o choro -a senha hipnótica. Que mãe ou pai não se abalaria?
Soube que passou a noite em claro, falando com os bandidos.
Na manhã seguinte, não fosse a filha chegar em sua casa, estava pronta para sair e depositar seu dinheiro na conta indicada.
Aflita, chorava sem parar. Não percebeu que a filha ali a seu lado não tinha sido sequestrada. Estava aturdida.
A senhora poderia ter morrido, tido um derrame... Torturar uma velhinha durante toda a noite, por uns R$ 500 ou R$ 1.000, não é apenas crime. É maldade e covardia.
Sempre acreditei que o valente do crime é um covarde porque está numa situação de superioridade sobre a vítima, tanto em força quanto em violência. Eles têm armas -palavra e astúcia.
Esse pseudovalentão não é apenas frio ou insensível, ele é mau. Parece ter o prazer da perversidade. Prazer com o que julga ser sua esperteza, prazer em torturar e fazer sofrer.
Não é o mal em abstrato nem o mal que fazemos sem intenção, mas essa capacidade de fazer o mal deliberadamente que tenho dificuldade em entender.
Não estou sozinha nessa interrogação. Há os que acreditam que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade e seus costumes, como a pobreza e a exclusão social. Há os que creem que somos pecadores por nascimento. E os que entendem que aos maus faltou boa orientação.
No Gênesis, há a referência de que só quando comeram do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal os homens se tornaram efetivamente humanos. Não a prática do mal, mas o conhecimento do mal seria a marca essencial da condição humana.
Todos, por condição de existência, somos capazes de distinguir entre o bem e o mal. No entanto, praticar o mal por intenção é uma questão de escolha. E cada escolha certamente tem seus motivos: raiva, inveja, intolerância políticas, religiosa... interesses diversos.
Todavia, não é essa escolha que me intriga ou os seus motivos. Os que escolhem fazer o mal têm prazer em praticá-lo, disso tenho certeza. Mas que tipo de prazer é esse?


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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