São Paulo, quinta-feira, 02 de agosto de 2001
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outras idéias - anna veronica mautner

As mulheres e o rádio

O rádio não interferia nas tarefas caseiras ou artesanais, mas ia trazendo o mundo para dentro de casa e atiçando a vontade de reagir

O mundo foi alcançar as mulheres dentro de suas casas, levado pelas ondas do rádio -antes mesmo que elas ousassem sair em massa para encontrar o mundo.
Antes de participar plenamente da força de trabalho remunerado, a mulher tinha lugar em um tipo de produção artesanal onde predominava um clima familiar. Bordadeiras, manicures, cabeleireiras, costureiras, tricoteiras, doceiras etc. trabalhavam em espaços pequenos, mas sempre com o rádio presente. Era um tempo em que os homens se orgulhavam de suas mulheres poderem parar de trabalhar quando se casavam, e elas se sentiam prestigiadas com isso. "Mulher minha não trabalha fora." "Moça não precisa estudar. Quando casar, vai parar de trabalhar mesmo." "Assim que meu marido melhorou de vida, deixei a repartição." Grande concessão era lecionar, porque eram poucas horas por dia.
Rádio Difusora, 16h. Surge uma voz lendo cartas que era seguida pela voz grave de madame D'Anjou respondendo, sugerindo soluções para conflitos humanos. E era de todo o Brasil que escreviam para ela. Em torno do rádio, em cada casa, oficina ou loja, fazia-se silêncio para ouvir as bem pensadas palavras de madame D'Anjou ou para prestar atenção ao diálogo das novelas. A troca de carta por conselho era um dos raros aspectos interativos do rádio. O silêncio não representava respeito a algo sagrado ou divino. O rádio nunca foi um oráculo. Era a voz do outro, a descoberta da alteridade ainda sem trocas. O rádio foi o celeiro de onde saíram grandes atores e autores: Cacilda Becker, Ivani Ribeiro, Walter Avancini etc. A voz do rádio não nos instigava nem ao comodismo nem à revolta, apenas nos conscientizava de que fazíamos parte do mundo, apesar de passivas ouvintes. A posteriori, pudemos perceber a importância desse período, provavelmente embrião da revolução sexual e do feminismo que se seguiram.
De início, a entrada das mulheres no mercado de trabalho teve caráter individual, cada uma fazendo sua revolução pessoal dentro de sua família. Sem as igrejas (que sempre existiram) e o rádio, as mulheres não teriam tido contatos significativos entre si até a década de 60. O rádio foi, para as mulheres, o mais importante instrumento laico de conscientização da cidadania. Por não ser interativo, o rádio não interferia nas tarefas caseiras ou artesanais, mas ia trazendo o mundo para dentro de casa e atiçando a vontade de reagir.
Quando surgiu o rádio, a língua "brasileira" já era o que é de norte a sul, com raras e frágeis sementes de dialetos. Coube ao rádio apenas impedir excessos de regionalização. Os ídolos musicais, os conselheiros sentimentais, os programas humorísticos e as novelas tiveram relevância na homogeneização de uma mentalidade e de um estilo que podemos chamar de "brasileiro". Difundindo os mesmos repertórios do Oiapoque ao Chuí, as rainhas e os reis do rádio homogeneizavam-nos, sem parar, a partir do centro de irradiação que era a capital federal, o Rio de Janeiro. Ali estavam não só as grandes transmissoras, mas também as grandes editoras de revistas que divulgavam a imagem daqueles de quem só conhecíamos a voz.
A invasão repentina e profunda do mundo dentro dos lares e das oficinas, onde estavam as mulheres, curiosamente não despertou ódio, censura ou temor que, décadas depois, a chegada da televisão provocou. O rádio entrou, dominou e continua dominando (pergunte a qualquer político). E veja quanta mudança podemos atribuir a ele! Que mais não seja, a de ter mudado a posição da mulher na sociedade, dando-lhe uma retórica que antes não tinha. Isso é bastante, pois ainda é ela que não só cria os filhos, mas que impõe a forma e o estilo de vida da família.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@attglobal.net



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