São Paulo, quinta-feira, 02 de agosto de 2007
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Outras idéias

Caprichos

Anna Veronica Mautner

Há pouco tempo, por pressa e um tantinho de descaso com a minha aparência, saí de casa com três cachinhos no topo da cabeça. Ainda bem que não ostentava bóbis, eram só grampos. Uma amiga me esperava, e lá fomos nós para um almoço de aniversário. Depois de uma hora, tendo já sorrido e conversado, por um acaso do destino pus a mão na cabeça e... socorro!! Arranquei ali mesmo os grampos que prendiam os cachos. Corei! Perguntei a quem estava ao meu lado por que não me avisara: "Porque achei que fosse novidade!".
Mesmo que fosse, caberia um reparo ainda que respeitoso. Hoje é assim: qualquer comentário é visto como desaprovação pela etiqueta -criticar, desaprovar e apontar diferenças viraram tabu. Parece que somos tão frágeis que não suportamos a percepção de nossos deslizes. É por isso que cada vez mais se confunde complacência com bons modos. Outro dia, vi saltar de uma calça jeans feminina, de cavalo bem curto, um traseiro completo. Ao natural, a calça já mostrava boa parte; agachando-se para endireitar o tênis, o indesejado aconteceu. O homem que a acompanhava se constrangeu, assim como outros que estavam em volta. Olhei para ver se ele faria algum comentário. Não fez.
Observação, crítica ou admoestação não deixam de ser feitos apenas nos deslizes do cotidiano -também abundam na vida profissional e na pública. Sem "feedback", é difícil aprender, corrigir e mesmo criar. Fosse isso regra só do mundo dos adultos, já seria grave. Presente em todas as etapas da educação das crianças, traz funestas conseqüências. Claro que não as deixamos fazer tudo, mas elas são impedidas com maior veemência quando atrapalham os adultos.
Evitamos que as crianças estraguem nossos livros, mas o caderno delas pode ter as pontas dobradas, folhas amassadas e capas maltratadas. Sei que ainda existe o ritual de encapar livros e cadernos novos no começo do ano. Assim se garante ao adulto o direito de cobrar asseio e ordem. Vivemos num mundo em que cada vez mais temos máquinas a nos substituir. Elas são exigentes e caprichosas; o cuidado é vital para que funcionem. As tomadas elétricas têm exigências milimétricas para manter o contato que as liga às máquinas, que, por sua vez, também exigem controles exatos.
Ainda bem que existem os "games" de internet, em que valem precisão e pontaria, senão criança nenhuma desenvolveria motricidade fina, justamente o que é cada vez mais exigido pela tecnologia. Digitar pede maior precisão do que a velha datilografia -qualquer toque no teclado produz efeito. O caderno relaxado não impede por si a aprendizagem, mas diminui a probabilidade de seu conteúdo ser levado a sério e assimilado. A repetição diária de erros e o desleixo generalizado que ocorre sob olhares complacentes não só banalizam o ato e o fato mas também desdenham a capacidade de o outro se aprimorar.
Apontar enganos é mostrar cuidado e respeito. É dizer que estava prestando atenção à pessoa que se enganou. Recebi chocada a complacência dos olhares que me deixaram no ridículo na festa. Teria preferido pito ou gozação. Durante meses, centenas de olhares complacentes deixaram passar vários enganos em todas as etapas do simples ato de aterrizar um avião em Congonhas. O culpado? Em parte, o vício do olhar complacente.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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