São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Dulce Critelli

Coisas de homem e de mulher


[...] APESAR DE ESFORÇOS, O LUGAR DAS MULHERES É AINDA A SUPERFÍCIE; E SEU VALOR ESTÁ NO DESEJO QUE PROVOCA NOS HOMENS

"Homem com homem, mulher com mulher, faca sem ponta, galinha sem pé..." Essa era uma cantilena de criança dos anos 1950 que sempre se ouvia quando a intenção era separar brincadeiras de meninos de brincadeiras de meninas.
Décadas depois as coisas mudaram, mas... nem tanto. O mundo ainda se divide em coisas de homem e de mulher. A candidata republicana a vice-presidente dos EUA, Sarah Palin, que o diga!
Como peça de sua campanha, um cartaz a exibe de turbante e o gesto do braço ostentando o muque. Esse cartaz, que recupera uma imagem usada durante a Segunda Guerra, sugere que ela é máscula para ir à luta e trabalhar. O gesto e o muque são coisas de homem. Política, ainda hoje, é coisa de homem.
Em contraste, sua popularidade de roubar a cena do candidato principal se deve ao fato de ela ser jovem e bonita. Ex-miss, além de ter virado boneca e seus óculos serem vendidos no Japão e nos Estados Unidos, fez milhares de fãs entre os jovens.
Não apenas entre eles.
Se ela não fosse bonita, não teria todo esse sucesso. Assim como são atributos masculinos a força física e a truculência, que parecem necessárias ao jogo do poder, a beleza continua marcada como um quesito fundamental para as mulheres.
O contra-senso é que ela quer ser eleita, sugerindo que porta os atributos masculinos. Não bastasse o cartaz, ela mesma se diz um pitbull de batom. Seus eleitores, porém, não estão pensando em política. Vêem nela a fêmea. Bela e sensual.
Parece que em lugar nenhum se leva a política a sério. Nas palavras de Heidegger, temos a tendência a "ver por alto" e a saber de tudo por "ouvir falar".
O que vale são as aparências.
E são essas aparências que fornecem os critérios para que se julgue as mulheres. Toda qualidade feminina estaria nelas: cabelos, sapatos, corpo, roupas, caras e bocas. No nosso mundo, apesar de esforços, o lugar das mulheres é ainda a superfície. E seu valor está no desejo que provoca nos homens.
Assim, toda mulher que quiser alguma posição na política ou em qualquer outra área, deverá parecer ser bonita, doce e sensual, mas, para se manter aí e fazer alguma coisa, precisará agir como um homem.
Cá entre nós, o feminino da mulher não é só beleza e sensualidade -tendência para a harmonia, capacidade de unir sensibilidade e inteligência, plasticidade, sobrepujar a compreensão do todo sobre o enfoque do específico e resistência à dor são alguns dos modos de ser feminino que vêm sendo amoldados ao longo da história.
Por que esses modos de ser femininos precisam ser abortados quando se trata do poder?
O pai de uma grande amiga dizia que, na sua casa, a cabeça era ele, mas sua mulher era o pescoço. São poderes complementares. O que seria de uma cabeça sem o pescoço?
E como seria a política se ela fosse feita no feminino? Certamente, não seria a de um pitbull com batom. No entanto, essa é uma descoberta ainda a ser feita. Melhor, essa é uma atitude ainda a ser tomada. É uma história a ser construída.


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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