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Outras idéias - Anna Veronica Mautner
Quero silêncio
Silêncio. Silêncio, por favor. Psiu. Gritamos e
colocamos janelas à
prova de som, paredes
almofadadas, tapetes, forros
etc. O barulho de construção,
de serra elétrica, de motores de
carro, de buzinas -é o preço da
modernidade, mas não é sobre
isso que eu quero falar, e sim
sobre o barulho humano de
crianças e jovens. Quero falar
dos sons das gentes.
Há anos, fala-se sobre a dificuldade de conciliar modernidade com ausência de silêncio e
falta de espaço. Amplo espaço
silencioso virou artigo de luxo.
Contudo, tenho que confessar
que somos nós, adultos, que liberamos e orquestramos esse
inferno em que o barulho humano transformou o nosso
mundo. Assentimos que ruídos
ensurdecedores feitos por
crianças, jovens e jovens adultos dominem.
Existem certos recintos que
não conseguimos evitar, e, assim, ninguém consegue um encontro consigo mesmo, que
sem silêncio é impossível.
Nada contra a alegria e tudo
contra o som pelo som, só para
fazer companhia e evitar esse
encontro. Musiquinha de fundo invade o planeta. Ficamos
sem refúgio. Solidão e silêncio
viraram palavrão?
Creiam-me, mesmo em hotéis grandões, é difícil encontrar lugar onde a criança entra
sem fazer barulho. Só no bar,
onde o escurinho à meia-luz é
sinal, aliás o único respeitado
pelas crianças. Em todos os lugares, seja ônibus, avião, lanchonete, cantina, somos envolvidos por gritos e por música,
jamais por sussurros.
Como é que as crianças, as
mesmas que gritam e galopam
pelos corredores, conseguem
manter-se em silêncio na missa, no culto, em enterros e em
velórios? Como é que respeitam também o cinema?
Pode parecer até que sou
contra criança, mas não sou,
não, pois acho que somos nós,
os adultos, por temer o silêncio,
que instigamos ou deixamos o
barulho vingar em volta de nós.
Quando vem uma ordem de silêncio pra valer, elas se calam e
param de correr. Vivemos um
momento e em um universo
em que a aversão ao silêncio
não se manifesta só com música de fundo, com escapamento
desregulado, com os motoqueiros, mas ainda nos damos ao luxo de liberar qualquer barulhento em qualquer lugar.
O que aconteceria se, de repente, o silêncio caísse sobre
nós? Respondo: discursos interiores, voz da "consciência",
emergiriam. Talvez sejamos todos culpados por maus pensamentos e/ou intenções, o que
nos leva a viver em permanente
esquiva de nós mesmos.
Com a barulheira que nos rodeia, tornamo-nos surdos a nós
mesmos. Parece que o lema
atual é: evitar o silêncio é o dever de todos. Deseduquem-se
os outros. Silêncio é necessário
para que se possa manter os homens como seres pensantes,
criativos, dotados de memória
e livres do excesso de estresse.
Não quero que o silêncio só
exista na calada da noite, no alto das montanhas, no ermo das
matas. Quero-o no contato com
as pessoas queridas, ricas e coloridas -meus semelhantes.
Não quero ser misantropa, quero ruído normal que me permita falar, sentir e pensar.
[...] Com a barulheira que nos rodeia, tornamo-nos surdos a nós mesmos; parece que evitar o silêncio é o dever de todos
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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