São Paulo, quinta-feira, 03 de janeiro de 2008
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Rodolfo Lucena

Alma maratonista

Alma. Maldita palavra essa, que, em quatro letrinhas, encerra os grandes medos da humanidade, as crendices das mais diversas denominações religiosas e a fé numa hipotética dicotomia entre corpo e espírito, entre concreto e abstrato, entre o que é e o que pode ser. Em nome dela, justificadas pelos conceitos e pelas ideologias que abriga, as maiores barbaridades foram cometidas ao longo dos séculos. Populações foram discriminadas, escravizadas, saqueadas, eliminadas, porque "não tinham" a tal alma ou porque a delas era "diferente".
Na vida e no esporte, conjuramos a tal alma para fazer o que nem sempre é possível: no mês passado, por exem-plo, a alma corintiana foi conclamada a salvar o time... Na corrida, descobrimos da forma mais dura -ou da mais agradável, gostosa, gulosa- que, por mais que talvez desejemos, essa suposta separação entre corpo e espírito não encontra amparo no asfalto duro.
Cada passada desenrola uma multidão de sensações, emoções, sentimentos, tudo muito difícil de controlar e, ao mesmo tempo, exigindo controle absoluto e comando firme.
À medida que avançamos, o corpo produz substâncias químicas que nos dão sensações gostosas, acalmam, tiram a tensão, colocam o corredor em melhores condições de pensar sobre si, sua vida, o mundo e a morte da bezerra, se for o caso.
Por caprichos da miséria humana, também à medida que avançamos crescem as sensações de desconforto; os músculos e os ossos, exigidos vigorosamente, dão o que têm e reclamam sempre.
No quilômetro 32 da maratona, eclode a mais violenta batalha entre o querer e o poder, entre a vontade e a capacidade, entre o vigor e o cansaço. Exaurido pela distância, já tendo consumido suas reservas de energia, o corredor destila pelos músculos substâncias que, da forma mais brutal, lhe avisam que o fim está perto: a dor é indício de que alguma coisa está errada e é melhor dar um jeito nisso.
Mas outras coisas também estão sendo produzidas naquela magnífica máquina de viver: sensações são buscadas na memória, emoções são revividas, e o sujeito faz das tripas coração -quer dizer, usa tudo o que tem para se transformar em algo mais, nele mesmo. Nem sempre dá certo, mas a maioria que tenta consegue. Chega até o fim da exaustiva prova, com muito de si destruído, mas com um novo ser em construção ali mesmo, no asfalto. E tudo, pensamento e gesto, razão e emoção, força e energia, tudo acontece nos estreitos limites daquele corpo de corredor. Que, talvez, leve a alma nos pés.


RODOLFO LUCENA, 50, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)

rodolfolucena.folha@uol.com.br

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