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Rosely Sayão
A religião da felicidade
No início do ano, quase
todos elaboram metas a serem buscadas
no novo período. E
duvido que muita gente não tenha desejado ardentemente ser
feliz no ano que se inicia ou que
boa parte de suas metas não vise
tal resultado.
É: ser feliz virou obrigação.
Religião, eu diria, pelo modo como encaramos o dever da felicidade. Precisamos ser felizes a
qualquer preço, e agora, quase
sempre, a felicidade tem um
custo palpável, que sabemos calcular e almejamos pagar.
Entre os mandamentos da felicidade, um deles é manter o
corpo saudável, jovem e magro.
Engordar, envelhecer, adoecer e
morrer são pecados mortais. E o
que fazer para evitar os agora
chamados males da vida?
Como muita religião, começamos pelo sacrifício: na busca do
paraíso corporal, é preciso fazer
abstinência de certos alimentos.
As comidas não são mais avaliadas como gostosas ou não, mas
como saudáveis ou nocivas. Não
comemos mais por prazer ou
para compartilhar, mas por dever. É só escondidos que cometemos alguns pecados contra esse mandamento, sem direito à
absolvição. Resultado: acumulamos culpa e tormento. Aí, chega
a hora da autoflagelação.
É preciso se exercitar, colocar
o corpo em movimento com regularidade espartana para garantir a saúde dele, estender a
vida ao máximo possível e, de
quebra, ainda levar um bônus:
melhorar o humor. É que assim
ajudamos nosso corpo a produzir mais endorfina, o chamado
hormônio da felicidade.
Outro mandamento, portanto, é mostrar-se feliz. Quer dizer: não basta ser feliz, é preciso
participar aos outros a própria
felicidade, ostentar. Para obedecer a esse mandamento, vale
usar todo o arsenal químico disponível. Quando lançado, o antidepressivo Prozac foi anunciado
como a "pílula da felicidade" e
assim é chamado até hoje.
As angústias existenciais tão
humanas, as tristezas inevitáveis, o sofrimento físico ou psíquico inerentes à vida são jogados num depósito de coisas inúteis. Só há lugar, na religião da
felicidade, para a alegria, o bom
humor, a satisfação e o prazer.
Entretanto, sempre há a possibilidade de um incômodo surgir. Quando experimentamos
uma frustração, uma contrariedade inesperada, nada como
sair às compras para aliviar.
Obedecemos, assim, a outro
mandamento importante da felicidade: consumir. O problema
é que acumular tem um limite
não muito largo, por isso tratamos de tornar quase tudo descartável para poder consumir
mais. Consumimos objetos, estilos, idéias, informações, "atitudes", pessoas, sentimentos etc.
com voracidade e tudo o que
consumimos se torna passageiro. Afinal, a felicidade não resiste à rotina, que estressa e impede que a felicidade se instale.
Talvez seja possível viver, e
momentos de felicidade fazem
parte da vida com maior despreocupação. Comer por e com
prazer, praticar atividade física
sem apego exagerado aos resultados prometidos, consumir
sem avidez etc.
Pensando bem, esses podem
ser votos pessoais bem mais
sensatos e possíveis, não é verdade? Desprendimento: essa é
uma boa palavra para viver melhor o novo ano.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como
Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
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