São Paulo, quinta-feira, 03 de setembro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Michael Kepp

O enigma que somos

[...] AS PESSOAS ESCONDEM MAIS DO QUE REVELAM OU ENVIAM SINAIS PERTURBADORES QUE PREFERIMOS IGNORAR

Se a expressão "a primeira impressão é a que fica" fosse verdadeira, eu seria um pária social. Isso porque minhas opiniões polêmicas às vezes ofendem desconhecidos. Também deixo uma segunda impressão ruim porque esqueço nomes e rostos de pessoas que acabo de conhecer. Por isso, chamo muitas de "querida". Mas, já que essas impressões são reversíveis, alguns viram amigos.
Por não confiar em primeiras impressões, também dou às pessoas uma segunda chance. Uma exceção: um cara da Fundação Ford que dizia conseguir sacar as pessoas em segundos. Ele teria desenvolvido a habilidade ao entrevistar candidatos a doações. Afirmou que podia separar, após algumas perguntas, os que tinham projetos sérios dos que só estavam atrás da verba da fundação. Ele disse que essa intuição tornava suas primeiras impressões exatas.
Minha primeira impressão dele é de que era cheio de si. As pessoas desenvolvem "conhecimento tácito", uma intuição baseada na experiência específica a uma circunstância. O cara da Fundação Ford farejava fraude entre os candidatos por ter, ao longo dos anos, reconhecido modelos de comportamento durante as entrevistas. Mas essa habilidade permite que veja nosso conteúdo em vez de nossa capa?
Nós todos julgamos que a "capa" é tudo sobre a aparência de alguém e criamos estereótipos que não conseguimos superar. Um exemplo é Susan Boyle, cantora nada atraente que apareceu em um show de calouros britânico, em abril. A bela voz de Boyle chocou porque não se encaixou no estereótipo que criamos quando ela entrou no palco. Mas, quando ela cantou, e o sorriso debochado de dois juízes virou admiração boquiaberta, vimos a nós mesmos.
As aparências geram uma atração mútua, o "amor à primeira vista". Se essa impressão fosse exata, não nos arrependeríamos de tantas escolhas românticas. Veja o episódio de "Sex and the City" em que rolou um clima entre Carrie e um cara na sala de espera do terapeuta. Depois do sexo, revelaram o que os levara à terapia. "Perco o interesse nas mulheres assim que transamos", diz ele. Ao que ela retruca: "Eu sempre escolho o homem errado."
"Primeiras Impressões" era o título original de "Orgulho e Preconceito", a história de Elizabeth, que julga rápido demais, e de sr. Darcy, cuja reserva aristocrática o faz parecer arrogante, mas que é querido por aqueles que o conhecem bem. Ela se apaixona por ele quando o tempo torna suas virtudes mais transparentes.
É necessário um oceano de tempo e um poço profundo de paciência para tornar as pessoas menos opacas. Mesmo amigos de anos nos surpreendem. Isso porque as pessoas escondem mais do que revelam ou enviam sinais perturbadores que preferimos ignorar. Ou mudam e até se reinventam. Ou nós fazemos isso. A complexidade do nosso comportamento dificulta decifrar o enigma que somos. Mas transforma a tentativa de conhecer alguém numa aventura fascinante.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

mkepp@terra.com.br



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