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OUTRAS IDEIAS
Michael Kepp
O enigma que somos
[...] AS PESSOAS ESCONDEM MAIS DO QUE REVELAM OU ENVIAM SINAIS PERTURBADORES QUE PREFERIMOS IGNORAR
Se a expressão "a primeira impressão é a
que fica" fosse verdadeira, eu seria um pária
social. Isso porque minhas opiniões polêmicas às vezes ofendem desconhecidos. Também
deixo uma segunda impressão
ruim porque esqueço nomes e
rostos de pessoas que acabo de
conhecer. Por isso, chamo muitas de "querida". Mas, já que essas impressões são reversíveis,
alguns viram amigos.
Por não confiar em primeiras
impressões, também dou às
pessoas uma segunda chance.
Uma exceção: um cara da Fundação Ford que dizia conseguir
sacar as pessoas em segundos.
Ele teria desenvolvido a habilidade ao entrevistar candidatos
a doações. Afirmou que podia
separar, após algumas perguntas, os que tinham projetos sérios dos que só estavam atrás da
verba da fundação. Ele disse
que essa intuição tornava suas
primeiras impressões exatas.
Minha primeira impressão
dele é de que era cheio de si. As
pessoas desenvolvem "conhecimento tácito", uma intuição
baseada na experiência específica a uma circunstância. O cara
da Fundação Ford farejava
fraude entre os candidatos por
ter, ao longo dos anos, reconhecido modelos de comportamento durante as entrevistas.
Mas essa habilidade permite
que veja nosso conteúdo em
vez de nossa capa?
Nós todos julgamos que a
"capa" é tudo sobre a aparência
de alguém e criamos estereótipos que não conseguimos superar. Um exemplo é Susan Boyle,
cantora nada atraente que apareceu em um show de calouros
britânico, em abril. A bela voz
de Boyle chocou porque não se
encaixou no estereótipo que
criamos quando ela entrou no
palco. Mas, quando ela cantou,
e o sorriso debochado de dois
juízes virou admiração boquiaberta, vimos a nós mesmos.
As aparências geram uma
atração mútua, o "amor à primeira vista". Se essa impressão
fosse exata, não nos arrependeríamos de tantas escolhas românticas. Veja o episódio de
"Sex and the City" em que rolou
um clima entre Carrie e um cara na sala de espera do terapeuta. Depois do sexo, revelaram o
que os levara à terapia. "Perco o
interesse nas mulheres assim
que transamos", diz ele. Ao que
ela retruca: "Eu sempre escolho o homem errado."
"Primeiras Impressões" era
o título original de "Orgulho e
Preconceito", a história de Elizabeth, que julga rápido demais, e de sr. Darcy, cuja reserva aristocrática o faz parecer
arrogante, mas que é querido
por aqueles que o conhecem
bem. Ela se apaixona por ele
quando o tempo torna suas virtudes mais transparentes.
É necessário um oceano de
tempo e um poço profundo de
paciência para tornar as pessoas menos opacas. Mesmo
amigos de anos nos surpreendem. Isso porque as pessoas escondem mais do que revelam
ou enviam sinais perturbadores que preferimos ignorar. Ou
mudam e até se reinventam. Ou
nós fazemos isso. A complexidade do nosso comportamento
dificulta decifrar o enigma que
somos. Mas transforma a tentativa de conhecer alguém numa aventura fascinante.
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e
Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
mkepp@terra.com.br
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